Emprego e dignidade - por João César das Neves

O pior desta crise está no emprego. Com uma taxa de actividade de 51,4%, 15,6% de desemprego e 22% de contratos a prazo, menos de 37% dos portugueses têm ocupação sólida. Este problema de altíssima taxa de inactividade é europeu, não só português. Para o combater é preciso ajustar os sistemas à realidade. Sem medo que mais actividade aumente o desemprego, pois trabalho cria trabalho; é a ociosidade que paralisa a economia.
A mística laboral moderna, por reacção à ociosa época aristocrática, glorificou o trabalhador como símbolo de excelência. Isso é bom e justo, mas as mudanças recentes exigem novas fontes de identidade. Ser inactivo, desempregado ou precário não pode ser vergonha, quando é a condição de quase dois terços dos cidadãos.
Desde sempre a posição e dignidade de cada um na comunidade liga-se à sua função social. A era moderna, no entanto, confundiu função com emprego, o que gerou males, sobretudo nos mais vulneráveis. Idosos, estudantes, crianças, donas-de-casa, como artistas, políticos, sindicalistas, sacerdotes, têm funções decisivas, apesar de não terem emprego. Num tempo economicista, que liga personalidade à produção, perdem dignidade.
Caso gritante é o trabalho doméstico. O lar, um valor humano supremo, agora é desprezado. Trabalhar em casa parece degradante. A família, que sempre foi a razão de toda a actividade exterior, emprego, política e luta, fica considerado como "andar com os tachos". Muitas pessoas, em geral mulheres, se queixam de terem um "emprego não remunerado" em casa, sem ver isso como muito mais digno e valioso do que trabalho.
Também a noção actual de "idoso" está obsoleta. Em 1950 a esperança de vida ao nascer em Portugal era de 58 anos; hoje é 80. Isto revoluciona as perspectivas de existência. Leis e instituições não o notam ou mudaram no sentido inverso. Antes uma pessoa de 65 anos era muito velha e trabalhava; o Decreto-Lei n.º 391/72 (13/Out), que criou o primeiro regime de previdência dos trabalhadores agrícolas, concedia reforma aos 70 anos (art. 2.º n.º 1). Hoje muitos sentem-se úteis acima dos 80, mas há mais de 20 anos que foram forçados à inacção. A esperança de vida aos 65 anos subiu nos últimos 40 anos mais de cinco (de 13,5 para 18,8 anos) enquanto a idade de reforma descia cinco anos.
É evidente que ninguém deve labutar no duro nessas idades. Mas envelhecimento activo é cada vez mais apresentado como meio decisivo para a qualidade de vida, depois de termos feito tudo para amarrar os idosos na inércia. A referida taxa de actividade resulta, em boa medida, de os políticos oferecerem às populações, como grande benesse, aquilo que na prática constitui a condenação à irrelevância e ociosidade, tantas vezes acompanhada de aborrecimento, solidão, apatia. Quando, devido a essa loucura, a segurança social rebenta financeiramente, os que a arruinaram acusam as medidas indispensáveis de destruir o estado social.
Também o ensino está mal calibrado. A educação não é um fim em si, nem pretende ocupar professores. O propósito tem de ser os alunos. Mas muitos jovens perdem tempo na escola, aprendendo coisas inúteis para o seu futuro, em nome de cânones educativos abstractos.
Além de políticas, estes problemas exigem o mais difícil: rever certezas e ideologias. A solução do nosso drama laboral seria fácil se conseguíssemos abandonar ideias feitas que décadas de propaganda nos gravaram na mente. É preciso subir a idade de reforma e conceber processos educativos mais curtos, dirigidos e eficazes. Mais urgente e relevante é promover e dignificar o voluntariado, trabalho doméstico e outras actividades informais e virtuais, onde cada vez mais gente participa, mas que a cultura obsoleta menospreza. Estas mudanças ajudariam até o pior problema nacional a que, por isso mesmo, ninguém liga: a decadência familiar e colapso da fertilidade. Também eles resultam da ideologia mercantilista, estatista e laboral, irremediavelmente retrógada. Mas a humanidade nunca consegue que os conceitos e opiniões mudem ao ritmo do real.

In DN 2013-12-09