Os milagres "imperfeitos" de Jesus (P. Gonçalo Portocarrero de Almada)

Bem sei que a Sagrada Escritura diz que Jesus «tudo fez bem» (Mc 7, 37) mas, paradoxalmente, muitos dos seus milagres parecem tão imperfeitos quanto as belíssimas capelas da Batalha, que o são precisamente porque nunca foram concluídas. Também vários milagres do Senhor parecem incompletos, porque realizados de forma aparentemente deficiente.
Senão, vejamos. Logo o primeiro, nas bodas de Caná, parece estranho, se se atentar a todos os pormenores. A pedido de Maria, Jesus acede a resolver milagrosamente a falta de vinho naquele banquete nupcial que, em boa verdade, corria sérios riscos de se tornar um autêntico «copo-de-água». Para o efeito, manda os serventes encherem seis talhas de pedra, tendo cada qual uma capacidade de uns cem litros, aproximadamente. Ou seja, obrigou os empregados a carregar uns seiscentos quilos de água, o que não é brincadeira. Ora um milagre «perfeito» podia e devia suprir essa operação prévia, pois Deus tem poder mais do que suficiente para fazer surgir, directamente do nada, o melhor vinho do mundo.
É verdade que o milagre das bodas de Caná foi o primeiro e, por isso, deve-se-lhe dar algum desconto. Mas, mesmo mais tarde, já sendo o Senhor mais experiente na arte, voltam a acontecer situações que parecem denotar alguma imperfeição no ofício. Por exemplo, aquando a segunda multiplicação dos pães e dos peixes, o Mestre excede-se na produção: com o que sobrou, encheram-se sete cestos bem cheios. Não teria sido mais lógico e económico que tivesse acertado na quantidade de alimentos a proporcionar àquela multidão de cerca de dez mil pessoas?! Por outro lado, Jesus serviu-se dos discípulos, qual improvisada empresa de «catering», para a distribuição daquele alimento milagroso e para a recolha das sobras, operação que, sendo tanta a gente a servir, deve ter sido muito demorada e cansativa. Porque não fez surgir, diante de cada comensal, a sua refeição, segundo a sua própria necessidade?! Não teria sido mais exemplar um milagre bem calibrado e sem necessidade de recorrer ao serviço dos apóstolos?!
Outro milagre estranho é o da cura do cego, em duas etapas. Depois da primeira intervenção de Jesus, o miraculado ficou a ver alguma coisa, mas tão desfocado que lhe parecia que os homens eram árvores que andam, o que é, obviamente, um insulto para os seres do reino vegetal. Foi precisa uma segunda actuação do Mestre para que o homem ficasse a ver bem. Pergunta-se: não teria sido mais lógico que o feito ocorresse de uma só vez?! Que dizer, ou pensar, de um médico que precisa de recorrer a uma segunda cirurgia, para corrigir o resultado da primeira?!
Mesmo depois da sua ressurreição, os milagres de Cristo parecem insuficientes, inexplicavelmente. A pesca milagrosa, que denuncia a presença do divino ressuscitado na margem do lago, volta a ser paradoxal: o artífice do facto extraordinário não poupa aos pescadores, depois de uma noite inteira de infrutífera faina, a penosa labuta de retirar do mar cento e cinquenta e três grandes peixes, tantos que a rede quase se rompia. Não lhes podia ter sido evitado este escusado sacrifício?! Não teria sido mais cómodo que a barca remasse para terra sem esse pesado lastro?! Não seria preferível que, logo de início, o peixe aparecesse na margem, já pronto para seguir para a lota?!
Como diria o Cardeal van Thuan, são precisamente estes «defeitos» de Jesus que o fazem mais amável. Se Ele só tivesse feito milagres «perfeitos», os fiéis mais não seriam do que meros espectadores passivos da sua acção. Com efeito, é a «imperfeição» dos seus milagres que convida à cooperação dos cristãos. Também o milagre em duas etapas é estimulante, na medida em que é um chamamento à esperança, na oração e na acção.
Graças a essas «imperfeições» divinas, todos os cristãos somos chamados a tomar parte activa na redenção do mundo, em união com Cristo e na sua Igreja, que é nossa também. Não falte, então, o nosso trabalho, nem a nossa fé!

In A voz da verdade, 2014.03.16