Conto de Páscoa (João César das Neves)

Fui visitar o meu amigo Vasco, que há uns meses fora nomeado administrador de uma grande multinacional. Do seu gabinete, no último andar da torre, tinha-se uma vista deslumbrante da grande cidade. Admirava eu o espectáculo quando ele murmurou.
"Do alto da cruz vêem-se todos os reinos do mundo."
Perante o meu espanto, explicou: "Sabes onde estás? Vê ali na parede. Aquele crucifixo marca este gabinete como o Calvário. Aqui é uma parte do Calvário; do grande Calvário que existe espalhado por todo o mundo. Jesus está crucificado e eu estou aqui crucificado com ele. Aqui é também o Calvário, como em milhões de outros locais, onde Jesus é hoje crucificado connosco. Aliás, como eu levo sempre um pequeno crucifixo no bolso, em todo o lado onde vou é também o Calvário. Na sala do Conselho, nos restaurantes onde faço as negociações, nas reuniões e nas fábricas que visito. Também aí está Jesus crucificado, e eu crucificado com ele."
"Julgava que gostavas deste posto!", disse eu espantado.
"Claro que sim. Mas sabes qual foi a primeira coisa que disse quando fui convidado? O que me veio à cabeça foi: "Primeira estação - Jesus é condenado à morte." Mais uma vez na minha vida começara a Via-Sacra. Assim este emprego faz parte da minha crucificação em união com a execução de Cristo. Nem queiras saber como isto me ajuda nos momentos maus, e são muitos, animando-me, pondo--me acima do sofrimento; porque, afinal, eu já estou crucificado, à espera da morte e ressurreição. Mas também me ajuda muito nos momentos bons, que também há, impedindo--me de me orgulhar e embriagar. Viver a vida crucificado aos pés da cruz, como um condenado junto a Cristo, muda tudo."
"Deves passar aqui bocados bem maus", disse eu compreensivo.
"Nem queiras saber. Mas, em geral, até acho a minha cruz bastante leve. Comparada com a vida de outros, a minha é doce e calma. Penso que isso se deve a eu ser tão fraco e débil. Jesus dá as provações conforme as capacidades de cada um. Aqueles que têm grandes sofrimentos mostram por isso serem pessoas fortes e capazes, com resistência. Aos franzinos como eu, o Senhor dá uma vida mais serena, com mais sucessos do que fiascos, porque não aguentaríamos a outra. Mas às vezes..."
"Ver a Administração como o Calvário é original."
"Enganas-te. Há muita gente a viver assim. E eu não comecei a pensar assim só agora. A primeira vez que percebi isto era ainda estagiário. Agora melhorei isso, mas no meu tempo os estagiários, acabados de chegar, eram forçados aos trabalhos mais aborrecidos e degradantes da empresa. Foi então que tomei o meu caminho como uma Via-Sacra, aceitando cada obstáculo, insulto e percalço como os de Jesus. Qualquer pessoa, em qualquer vida que tenha, pode sempre vivê-la aos pés da cruz. Eu, como sou gestor, sinto-a na empresa, mas muitos outros a sentem nas actividades variadas em que vivem. Um amigo meu... Tu deves conhecer, o António Pinto Leite, escreveu há uns anos um livro muito bom chamado O Amor como Critério de Gestão. Vale a pena ler. Eu não sei escrever livros, mas se escrevesse um chamar-se-ia: A Cruz como Instrumento de Gestão. Um dia até sou capaz de sugerir ao António que ele o escreva. Mas a cruz, além da gestão, é instrumento de tanta coisa mais..."
"Estava aqui a pensar que isto tem graça, precisamente porque toda a gente te acusa, e a ti e aos teus colegas, de serem capitalistas gananciosos e exploradores, gestores impiedosos e desumanos..."
"Eu sei. Acham que sou um demónio. Ou, pior, chefe de demónios. Mas isso alegra-me, porque foi também assim que trataram o Senhor Jesus: "É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios" (Mt 9, 34). Hoje em dia, os gestores e financeiros são mais desprezados e insultados, até pelos cristãos, do que as prostitutas e os publicanos do tempo de Jesus. Mas era com esses que Cristo gostava de estar. Rezo pelos fariseus que me acusam sem me conhecerem, e não os acuso, porque o Senhor está com os acusados e condena os acusadores. Cada vez que leio as notícias ou ouço conversas sobre mim ou a empresa sinto-me ainda mais identificado com o Senhor."
Nesse momento tocou o telefone. Fiz menção de sair mas ele indicou--me uma cadeira e atendeu. Não percebi quem era, mas tratava-se evidentemente de uma negociação que correra mal e o interlocutor culpava o Vasco disso. Inicialmente ele tentava justificar-se, mas ia ficando calado. Quando o telefonema acabou ele esteve alguns minutos silencioso, com os olhos em baixo. Depois olhou-me, sorriu e disse: "Sétima estação - Jesus cai pela segunda vez."

In DN 2015.04.01