A flor e o oceano (João César das Neves)

O Papa Francisco abriu ontem o Jubileu da Misericórdia. Muitos falarão dela mas poucos se darão conta de quanto é única, invulgar, incomparável. Porque a misericórdia é uma flor muito delicada, rara e especial. Existem imitações, a clemência régia, a compaixão budista, a tolerância maçónica, mas falta-lhes a sublimidade de certos ingredientes subtis da misericórdia cristã.

Primeiro, é grande a distância entre misericórdia emotiva e a virtude da misericórdia. Todos, mesmo os mais impiedosos, sentem empatia e compreensão por alguém. Crianças, idosos, familiares, amigos, mesmo quando cometem os piores erros, suscitam indulgência. Isso tem pouco que ver com a verdadeira misericórdia, pois essa é independente dos sentimentos. Certas discussões recentes na Igreja mostram a diferença.

Nos recentes sínodos sobre a família, muitos católicos progressistas apregoaram a necessidade da compaixão para com divorciados recasados, mães que abortam, homossexuais, etc. Mas esses mesmos estão disponíveis para meter nas mais profundas do inferno os fiéis conservadores e membros da Cúria, bem como capitalistas, financeiros, corruptos e poluidores, a quem detestam. Para estes pecadores não haverá remissão. Pelo seu lado os cristãos tradicionalistas são muito severos com os primeiros e benevolentes com os segundos.

É curioso que a discussão se centre nestes temas porque Jesus, a quem todos seguem devotamente, era conhecido por comer com prostitutas e publicanos, afirmando que eles "entrarão primeiro no Reino dos Céus" (Mt 21:31). Surgem aí precisamente os dois tipos de pecados das nossas disputas, o sexo e o dinheiro. Cada um dos grupos de fiéis tem dificuldade em desculpar um deles mas Cristo acolhia a todos. Porque Ele olhava não à simpatia do pecador, sempre discutível, ou ao horror praticado, sempre detestável, mas ao arrependimento da pessoa concreta que tinha diante, na sua fraqueza e miséria.

A segunda diferença é que a genuína misericórdia só é verdadeiramente sentida pelos grandes culpados. Como disse Jesus da mulher pecadora: "São-lhe perdoados os seus muitos pecados porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama" (Lc 7:47).

O cardeal Bergoglio, antes de ser eleito Papa, explicou isso numa entrevista. "Há pessoas que se julgam justas, que de algum modo aceitam a catequese, a fé cristã, mas não têm a experiência de ter sido salvas. Uma coisa é contarem-nos que um rapaz estava a afogar-se no rio e uma pessoa atirou-se para o salvar, outra coisa é vermos isso e outra ainda é sermos nós a afogar-nos e vir outro atirar-se para nos salvar. Há pessoas a quem o contaram que não o viram, que não quiseram ver ou não quiseram saber o que se passava com essa criança, e tiveram sempre escapatórias tangenciais a uma situação de afogamento, e não têm, por isso, a experiência de saber o que isso é. Penso que só nós, os grandes pecadores, temos essa graça. Costumo dizer que a única glória que temos, como sublinha São Paulo, é sermos pecadores" (Rubin, S. e F. Ambrogetti (2013) Papa Francisco. Conversas com Jorge Bergoglio, Paulinas 2013, capítulo IX, p. 101-2).

É que isto gera o grande paradoxo da misericórdia. Neste texto o cardeal gloria-se de ser pecador. Claro que ele não se orgulha do mal que fez. Desse, ele está amargamente arrependido. O que o alegra, o que lhe dá glória, é a misericórdia divina. É o amor que sente de ter sido muito perdoado. É essa a contradição de haver "mais alegria no céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão" (Lc 15:7).

A terceira característica desta flor tão invulgar parece a inversa da anterior: todos precisamos dela. Só os grandes culpados a sentem, mas todos a requerem. É isso que nos revela o episódio da mulher adúltera: «"Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra"... Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos» (Jo 8: 7). Todos temos pecados suficientes para sermos condenados, e todos só sobrevivemos graças à infinita misericórdia divina.

Daqui sai o quarto ingrediente. Como "Deus é amor" (1Jo 4:8) a misericórdia divina é a base da realidade. Todos, por pior que sejam os crimes, a recebem desde que se arrependam e convertam. A misericórdia, essa flor frágil e rara, é também o oceano infinito onde todos mergulhamos.

Uma só força vence a gloriosa misericórdia: a soberba. Esse é o terrível pecado dos fariseus: a cegueira de se sentir sem pecado, a arrogância de se fazer justo e juiz, a loucura de desdenhar a misericórdia.

 

        In DN 2015.12.09