Humanizar os humanos (Pe. Duarte da Cunha)
O tempo de Advento e o aproximar-se das festas de Natal levam-nos sempre a pensar no significado profundo da Encarnação: Deus Criador que Se faz homem. Deus criara o homem à Sua imagem e semelhança, e esse facto desde logo confere ao ser humano uma dignidade incomparavelmente maior do que a de qualquer outra criatura existente nesta terra. E porque estavam revestidos desta dignidade, ao contrário dos dinossauros, os seres humanos, mesmo depois de se terem rebelado, continuaram a ser amados e não foram extintos.
Porque somos imagem de Deus, somos inteligentes, capazes não só de, à maneira dos animais, reconhecer um objecto pelos sentidos e advertir se é bom para comer, se é perigoso ou se é amigo, como também e, sobretudo, somos capazes de procurar o sentido das coisas que encontramos e, mais ainda, de nós mesmos. Ser inteligente é, por isso, muito mais do que acumular conhecimentos como pode fazer uma memória de computador: é poder ser sábio! A inteligência mete-nos no caminho da verdade.
Essa verdade, que todos queremos abraçar, tem vários inimigos. O mais evidente é a mentira, quando alguém, de propósito, diz o contrário do que aconteceu ou do que uma coisa é. É inimigo da verdade também o erro porque, mesmo que involuntariamente, ao dizer de algo o que isso não é, cria confusões (tentar não errar é uma obrigação, e se não sabemos tudo perguntar para não errar é fundamental). Mas há ainda um terceiro inimigo da verdade, muito em voga nos nossos tempos: a aparência. Nos nossos tempos, quando se dá muita importância à acumulação de informação – passar os olhos pelos jornais, ver twitters ou posts no Facebook – e pouco tempo à leitura de um livro, à escuta de uma pessoa com mais experiência de vida ou à oração em silêncio, não admira que as aparências tomem o lugar da verdade. As pessoas dizem saber muita coisa, mas será que compreendem o que sabem? Contudo, a inteligência humana, que é capaz e desejosa da verdade não se satisfaz com as aparências e vive angustiada quando fica nesse patamar.
Porque somos imagem de Deus, somos também livres. E, porque livres, capazes de amar, capazes de sermos senhores de nós mesmos e de nos darmos aos outros. Até de nos sacrificarmos pelos outros, aceitando algo que nos custa em vista de um bem maior para outro. Ser livre implica uma interioridade, uma consciência de se ser único e de se ser, por isso mesmo, especial. A liberdade é, por isso, aquilo que, fazendo de nós grandes, nos pode também fazer mesquinhos. Quando decidimos pelo mal: como podemos achar que somos grandes? Não basta não ter amarras, a liberdade e a inteligência juntas levam cada um de nós a assumir a responsabilidade da vida, mas, ao mesmo tempo, fazem ver que o ser humano não se realiza sozinho.
Porque somos imagem de um Deus que é comunhão de Pessoas, a Santíssima Trindade, também só realizamos plenamente a nossa humanidade na relação com outros. Não somos ilhas justapostas, mas relação, somos uma rede de relações. Estamos bem na vida quando estamos com os outros conscientemente. Porém, não basta estar ao lado dos outros e de interagir. O ideal humano, que segue a realidade de Deus, é viver em comunhão. O amor é a relação humana que nos faz ser mais imagem de Deus, ou seja, mais nós mesmos.
Também o corpo e os sentimentos, com as suas dores e prazeres fazem parte desta maravilha que é a pessoa humana. Tudo em nós é chamado a reflectir a imagem de Deus que somos. Somos uma unidade, uma pessoa, um “eu” e não a soma de partes. Daí que cultivar a inteligência, educar a liberdade e cuidar do corpo é indispensável.
No Natal recordamos que Deus se faz homem para nos salvar, que é como quem diz, para restituir ao homem a sua verdade de imagem de Deus e, mais ainda, para nos tornar filhos de Deus. Deus uniu-se aos homens, para que nós, unidos a Ele, fossemos resgatados das mentiras, das aparências, das maldades e pudéssemos viver a nossa verdade plenamente. Eis o ideal de vida que só Jesus nos pode restituir: sermos sábios, livres, capazes de amar e de viver em comunhão, sermos dedicados aos outros e puros no coração. No Natal percebemos que a nossa maior dignidade está no facto de conseguirmos aceitar ser salvos por um Deus que, humilhando-Se, nos fez ver o caminho, a verdade e a vida.
In Voz da Verdade, 2015.12.13
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