SANTOS (E POLÍTICOS) QUE PERDERAM A CABEÇA - P. Gonçalo Portocarrero de Almada

A moda é antiga, porque já João Baptista, festejado no passado dia 24, foi decapitado. Foi o primeiro santo que, em termos literais, perdeu a cabeça. Muitos outros lhe seguiram as pegadas (ou cabeçadas?!), nomeadamente os dois mártires ingleses celebrados liturgicamente dois dias antes: São João Fischer, Bispo de Rochester, e São Tomás More, chanceler do Rei Henrique VIII.

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As circunstâncias que rodearam o martírio de João Baptista são bem conhecidas. Filho de Isabel e de Zacarias era, pelas mães de ambos, primo de Jesus de Nazaré. Como nasceu quando os seus pais eram já de idade avançada, não tinha irmãos e é provável que tenha ficado órfão muito novo. Talvez por isso foi viver para o deserto, onde se vestia de peles de animais, comia gafanhotos e mel silvestre. Não era só a sua vida penitente que era dura: também as suas palavras o eram, quando o exigia a caridade.

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Com efeito, não se inibia de dizer o que entendia conveniente, o que geralmente era muito inconveniente. Censurava em público a vida licenciosa de Herodes, que vivia adulteramente com a mulher de seu irmão, que era sua prima. É provável que o próprio Herodes já tivesse notado que Herodíades não era a sua mulher, e que, portanto, a situação era escandalosa. Todos o sabiam, como é óbvio, mas só João Baptista se atrevia a censurá-lo. Herodes ouvia-o com gosto, porque lhe reconhecia a coragem.

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O rei tolerava o Baptista – assim denominado por administrar um baptismo de penitência, que ainda não era o homónimo sacramento cristão – mas, por razões que não são difíceis de adivinhar, prendeu-o nas masmorras do seu palácio. No dia de anos de Herodes, a filha da amante dançou tão bem que o aniversariante lhe prometeu, com juramento, o que quisesse, mesmo que fosse metade do seu reino. A jovem foi aconselhar-se com sua mãe, que exigiu a cabeça de João Baptista. Herodes ficou triste com o pedido, mas, para não faltar à palavra dada, mandou que João fosse degolado no cárcere e a sua cabeça entregue, num prato, à dançarina, que a levou, qual troféu de caça, a sua mãe.

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Desde então, a cabeça dos mártires é um pitéu que se serve com frequência nos banquetes dos tiranos que, em geral, apreciam os aduladores, mas detestam os que têm o mau gosto de os contrariar. Foi o que aconteceu, já em pleno século XVI, com os dois mártires ingleses festejados no dia 22 de Junho: São João Fischer, Bispo de Rochester, e São Tomás More, chanceler de Henrique VIII. Ambos se opuseram ao divórcio do rei com Catarina de Aragão, e ao seu posterior ‘casamento’ com Ana Bolena. O luxurioso monarca britânico, logo que se autoproclamou chefe da Igreja anglicana, tomou o gosto de casar e descasar a seu bel-prazer, tendo tido consecutivamente seis mulheres, que lhe deram três filhos, que não deixaram geração. À medida que decapitava as ex-mulheres, mais difícil lhe era – vá-se lá saber porquê! – encontrar quem com ele quisesse casar: tendo pedido a mão de uma dama, a dita, temendo que também estivesse interessado na sua cabeça, declinou o régio pedido.

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Com a mesma sem-cerimónia com que o oitavo Henrique se divorciava e decapitava algumas das suas ex-mulheres, também cortava a cabeça dos súbditos que ousassem contradizer os seus caprichos sentimentais. Foi o caso de João Fischer e de Tomás More.

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Embora fosse evidente a ilegitimidade da pretensão matrimonial henriquina, a grande maioria dos nobres da corte e dos prelados ingleses acedeu ao que sabiam ser a vontade régia. Como sempre acontece nos momentos críticos, os cobardes disfarçam de prudência a sua criminosa cumplicidade, enquanto os verdadeiros heróis preferem, como disse o inspirado vate lusitano, antes quebrar do que torcer. Algo semelhante aconteceu no regime nazi, em que não faltaram casos isolados de grande heroísmo, como o do Bispo católico Clemens August von Galen, o ‘leão de Munique’, feito cardeal por Pio XII e beatificado por Bento XVI, ou o do pastor luterano Dietrich Bonhoeffer, ou ainda o do oficial católico Klaus Schenk von Stauffenberg, fuzilado depois de fracassada a operação Valquíria, que se propunha redimir a Alemanha pela morte do tirano.

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Num gesto de grande ousadia pastoral, São João Paulo II nomeou São Tomás More padroeiro dos políticos. É de supor que quis conceder aos governantes, como exemplo, a cabeça que, num acto de heroica fidelidade à fé e aos princípios morais universais, preferiu renunciar ao corpo e à vida, em vez de comprometer a consciência.

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Infelizmente, a julgar pelo comportamento dúbio de não poucos políticos, ditos católicos, que promovem a eutanásia e o aborto, muitos julgaram que lhes era dado, como padroeiro, um corpo sem cabeça e não uma cabeça sem corpo. Tal como sucede com alguns galináceos que, mesmo decapitados, ainda dão uns passos, assim acontece também com não poucos governantes sem cabeça. Pelos vistos, adoptaram como seu patrono o corpo sem cabeça do mártir inglês, em vez da cabeça sem corpo do seu santo intercessor.

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Quando um político estorva é, quase sempre, por causa da sua consciência, ou seja, por razão da sua cabeça. Um São João Baptista degolado, como um São João Fisher ou um São Thomas More decapitados, não incomodam ninguém. Por isso, alguns tiranos, para evitarem dores de cabeça, não quiseram a do mártir para sua padroeira, preferindo o corpo, sem cabeça, do ex-chanceler. Muitos aliás, diga-se de passagem, têm sido extraordinariamente devotos do decapitado corpo do seu santo intercessor.

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A festa litúrgica destes dois tão estimados mártires ingleses ocorre a 22 de Junho, aniversário da decapitação de São João Fisher. Já detido na Torre de Londres, vários bispos católicos tentaram, em vão, que aderisse ao cisma anglicano, o que o levou a comentar: “A fortaleza foi traída pelos que era suposto serem os seus defensores.”

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Não obstante as duras críticas de Fisher contra os excessos da cúria romana, o Papa Paulo III fê-lo cardeal, poucos meses antes da sua execução. Henrique VIII troçou: “O Papa concedeu-lhe o chapéu (cardinalício) mas, quando o receber, já não terá cabeça para o pôr!”. Ao contrário do que o ímpio soberano supôs, esse gesto pontifício não pretendia honrar o corpo sem cabeça do confessor da fé, mas a cabeça sem corpo do mártir, porque os chapéus são para a cabeça e um homem é, sobretudo, a sua cabeça, ou seja, a sua consciência. Chapéus há muitos mas, então como agora, faltam cabeças.