O aborto voluntário não é um direito da mulher (Mário Pinto)

O aborto voluntário não é um direito da mulher - Artigo de Mário Pinto, Professor catedrático da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.

Se a vida do nascituro é vida humana e a vida humana é direito inviolável, não se pode conceber um outro específico direito fundamental a violar directamente este direito fundamental, logo inviolável.

1 Dia sim, dia não, a propósito ou a despropósito, há sempre entre nós uma voz publicada com destaque dizendo que o aborto voluntário é um direito da mulher. E, por esta curta expressão, sem determinar quaisquer limitações ou condições, insinuando que se trata de um direito fundamental e absoluto. Por vezes, até vozes de juristas. O que é muito surpreendente, porque tal não é verdade, nem pode ser. O constitucionalismo humanista proclamado na Revolução Liberal dos fins do século XVIII confirmou a anterior fortíssima e milenar tradição no reconhecimento de que a vida da pessoa humana é inviolável, desde a sua concepção. Como se pode confirmar pela legislação punitiva do aborto que se seguiu a essas stecentistas Declarações de Direitos Humanos. Esta concepção foi também reconhecida, agora com alcance universal, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: «Toda a pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal» (art. 3.º da DUDH). E está também consagrada na Constituição Política da República Portuguesa, que a gravou assim no art. 24.º: «A vida humana é irrevogável. Em caso algum haverá pena de morte».

2 Ora, a interpretação consensual desta norma jurídica, já confirmada pelo Tribunal Constitucional Português, é que o disposto no art. 24.º da Constituição, que declara a vida humana como inviolável, abrange a vida do nascituro. E, de acordo com tal interpretação, o Código Penal tem um Capítulo expressamente dedicado aos «crimes contra a vida intra-uterina». Onde apenas se admitem alguns poucos casos-tipo de «Interrupção da gravidez não punível». Entre os quais casos, diz o Código Penal, no art. 142.º: «Não é punível a interrupção da gravidez «efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando […] For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.» Nada, portanto, que se pareça com direitos da mulher; mas apenas caso em que a ilicitude criminal não é punível, sem deixar de ser ilicitude criminal.

3 A ciência evidencia que, desde a concepção até à morte natural, há sem dúvida desenvolvimento da pessoa humana, mas não há solução de continuidade entre a vida do nascituro e a vida do já nascido. É impossível provar que a vida do nascituro ainda não é vida humana. Portanto, se a vida do nascituro é vida humana, e a vida humana é um direito inviolável, não se pode conceber um outro específico direito fundamental a violar directamente este direito fundamental, por definição inviolável. O único caso em que se pode configurar uma violação legítima do direito à vida humana é no caso clássico da legítima defesa, em que aquele que defende o seu direito à vida pode legitimamente violar o direito à vida daquele que viola o seu direito à vida, se tal for ponderadamente indispensável a essa defesa. Mas este caso só se aplica à situação bem conhecida em que medicamente haja que optar entre a vida da mãe e a vida do filho, por exemplo durante o parto. No caso típico do aborto voluntário, o filho gerado não ameaça tirar a vida à sua mãe.

4 O que o Tribunal Constitucional reconheceu foi que o exercício do «direito de liberdade [da mulher-mãe] de desenvolver um projecto de vida […], como expressão do desenvolvimento da sua personalidade», é condicionado pela vida do filho nascituro. E o que finalmente decidiu, numa sua dramática deliberação de apenas sete contra seis votos, e com seis declarações de voto de vencidos de arrasadora fundamentação, foi que a mãe pode evitar esse condicionamento da sua liberdade por via da sua provocação da morte do seu filho, evitando a respectiva punição penal desse crime contra vida intra-uterina do seu filho. Assim o Tribunal Constitucional não reconheceu às mulheres um original direito fundamental ao aborto voluntário fundado na propriedade do seu corpo, como constantemente se propagandeia.

5 Na sua decisão, a maioria do Tribunal Constitucional cometeu dois erros graves. O primeiro erro foi o de dar por descontado que o alegado conflito de direitos fundamentais entre a mãe e o filho é um conflito entre duas iguais ofensas de direitos. Ora, tal não é verdade. A liberdade da mulher-mãe de organizar a sua vida não é ofendida com o seu sacrifício total e definitivo pela vida do filho; ela continua a poder organizar a sua vida ainda que em circunstâncias diferentes. Mas, na posição inversa, pretende-se que a liberdade da mulher a organizar a sua vida possa exigir o sacrifício total e definitivo da vida (inviolável) do filho. Por outras palavras: a garantia da vida do filho não impede completamente o exercício do direito da mãe, que pode sempre continuar a organizar a sua vida, embora em termos diferentes. Mas a garantia da liberdade da mãe é entendida como impedindo total e defintivamente que o filho possa continuar a viver, ainda que em termos diferentes.

6 Ora, a verdade é que todos os direitos humanos se ajustam, no seu exercício, ao respeito e à promoção dos direitos e dos deveres humanos, uns dos outros. E sublinhe-se: não só dos direitos, como também dos deveres, enquanto igualmente fundamentais. A Parte Primeira da Constituição Portuguesa, onde se inclui o reconhecimento e a garantia do direito à vida e do direito ao desenvolvimnto da personaliadade, tem por rubrica «Direitos e Deveres Fundametais». Todos os direitos e deveres humanos são sistémicos, com base na unidade incindível da dignidade da pessoa humana. E portanto não é legítimo impor a nenhum deles, no seu ajustamento, a sua extinção total e definitiva. Se fosse assim, todos os direitos humanos seriam condicionais, porque todos são condicionantes uns dos outros. Portanto, o direito de viver ajusta-se aos direitos dos outros; mas para tanto não lhe pode ser imposta a sua extinção. Do mesmo modo, e na mesma medida, o direito a organizar a vida pessoal também se deve ajustar aos direitos dos outros; sem que se lhe seja atribuída o direito de extinguir os direitos dos outros. Ora bem, com base nesta lógica categórica, o direito da mulher-mãe à organização da sua vida tem que se ajustar à vida do filho, sem que para isso este direito seja extinto. Do mesmo modo que a vida do filho tem de se ajustar à organização da vida da sua mãe, sem que por causa disso possa ser definitivamente extinto.

7 O segundo erro cometido pelo Tribunal Constitucional foi o de afirmar que o método que inventou para o ajustamento no gozo dos dois direitos, o direito da mãe e o direito do filho, é um método equilibrado. Trata-se do chamado método dos prazos, que praticamente (e isto é o que importa) se traduz em dar à mulher um prazo para decidir, em seu completo e incontrolado arbítrio, se quer ou não sacrificar completa e definitivamente o direito à vida do filho, em favor do seu direito a organizar a sua vida sem qualquer ajustamento ao direito da vida do filho. Como é evidente, este «método dos prazos» é um falso equilíbrio, porque a liberdade da mãe é sempre vencedora e a vida do filho resulta sempre dependente do exercício da liberdade da mãe. A vida do filho nunca sacrifica a liberdade da mãe, porque essa liberdade só é sacrificada se a mãe quiser. E a liberdade da mãe sacrifica sempre que queira a vida do filho. De facto, o alegado equilíbrio que se obtém para o gozo destes dois direitos fundamentais de liberdade pelo «método dos prazos» é um perfeito sofisma.

8 Note-se, ainda, que o Tribunal Constitucional cometeu os dois referidos erros com a agravante de considerar tipicamente que a mulher é completamente irresponsável na concepção do seu filho; e que ela está completamente desprotegida pela Sociedade e pelo Estado nos encargos da sua maternidade. O que não é verdade: nem uma coisa nem outra.

9 Por fim, seja-nos permitido recordar a opinião de um ilustre professor universitário, jurista, filósofo e politólogo, com grande e ainda actual reputação internacional, se bem que entretanto já falecido, Norberto Bobbio, senador vitalício italiano, referência como defensor do liberalismo laico, que verberou asperamente os liberais e laicos defensores do direito ao aborto, porque negam o imperativo categórico do respeito pela vida humana. Numa histórica entrevista, e criticando o argumento que invoca o direito das mulheres ao aborto com base no direito sobre o seu corpo, ele respondeu assim: «as feministas dizem: “o corpo é meu e sou eu que mando nele”. Parece uma perfeita aplicação de um princípio. Eu, pelo contrário, digo que é aberrante aplicá-lo ao aborto. […] No caso do aborto, há um outro corpo no corpo da mulher. O suicida dispõe da sua única vida. No aborto dispõe-se da vida de um outro.» Norberto Bobbio afirmou ainda expressamente que «o nascituro tem o direito fundamental de nascer». E defendeu que o direito de nascer é precedente dos direitos da mulher e da sociedade, por estas palavras: «o primeiro, o [direito] do nascituro, é fundamental; os outros, o da mulher e o da sociedade, são derivados.» E quando o entrevistador lhe observou que a sua posição era surpreendente num laico, ele respondeu: «Eu perguntaria que surpresa pode haver no facto de um laico considerar o não matar como válido, em sentido absoluto, como um imperativo categórico. Pela minha parte, admiro-me que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».

In Observador, 29.05.2024