Eutanásia, liberdade e dignidade humana (P. Gonçalo Portocarrero de Almada)

A eutanásia não é um direito, mas a violação do mais irrenunciável dever jurídico e moral: o de respeitar a vida humana, que é digníssima desde o instante da concepção até ao momento da morte natural.

Os subscritores do manifesto a favor da eutanásia afirmam-se “unidos na valorização privilegiada do direito à liberdade” e, como tal, defensores da “despenalização e regulamentação da morte assistida”, que entendem ser “uma expressão concreta dos direitos individuais à autonomia, à liberdade religiosa e à liberdade de convicção e consciência, direitos inscritos na Constituição”.
Não restam dúvidas quanto à sua valorização do “direito à liberdade”, nem o seu apreço pelos “direitos individuais à autonomia”, mas resta saber se essa opção pode prevalecer quando contrária à vida, à integridade física ou à dignidade humana. A questão é pertinente porque há quem entenda que não é lícito proibir que alguém, livre e conscientemente, opte pela ‘morte assistida’. Mas, será mesmo assim?
Ninguém pode, por hipótese, vender um seu órgão, porque o direito não permite a comercialização dos seres humanos, nem de nenhuma parte do seu corpo, que não é uma coisa de que se é dono e de que se possa livremente dispor, mas parte integrante da personalidade humana. Pela mesma razão, há que excluir absolutamente a escravatura, mesmo que houvesse alguém que, na plena posse das suas faculdades, admitisse alienar para sempre a sua liberdade. De facto, o direito não pode consentir no que, mesmo querido de forma consciente e voluntária, atenta tão gravosamente contra a dignidade humana.
O uso, ou abuso, da liberdade individual pode chegar a extremos verdadeiramente inconcebíveis, sem que seja necessário evocar, para o efeito, acontecimentos de outras eras ou, por hipótese, remotas tribos canibais da polinésia. Com efeito, a 27 de Dezembro de 2003, o The New York Times publicou uma notícia que causou estupefacção e horror: um alemão, Armin Meiwes, matou um seu compatriota e, depois, ingeriu os seus restos. O insólito assassínio tinha sido, no entanto, consentido pela vítima. Contudo, a sua aquiescência foi, obviamente, tida por irrelevante e o antropófago foi punido pelo seu hediondo crime. É, sem dúvida, um caso extremo, mas aconteceu, não na pré-história, nem no terceiro mundo, mas em pleno século XXI e na civilizada e culta pátria de Beethoven e de Hegel.
Também há, como é sabido, quem consinta em ser alvo de violência doméstica e, por isso, não só não queira apresentar queixa contra o agressor, como também se oponha a que o mesmo seja denunciado. Contudo, a lei entende – e muito bem! – que a ninguém é lícita a transigência em relação a actos que, pela sua própria natureza, são criminosos, mesmo que permitidos por quem os padece. Ou seja, quando a vida, a integridade física ou a dignidade humana estão em causa, é juridicamente irrelevante o consentimento da vítima.
A 19 de Janeiro de 2009, a imprensa britânica noticiava um caso insólito: um sujeito, referido como sendo Guy Masterleigh, tratava uma tal Deborah, de 38 anos, como se fosse uma cadela, a que chamava Cutie. A própria, que estava no seu são juízo e que ‘ladrava’ e se movia a quatro ‘patas’, fez questão de declarar que gostava de ser assim tratada. Quem defenda absolutamente os direitos individuais à autonomia, não se poderia opor a um tão ultrajante comportamento, mas quem entende que há direitos fundamentais de que nem o próprio pode abdicar, teria legitimidade para impugnar um procedimento tão indigno.
Por outro lado, uma pessoa muito idosa, um doente terminal, ou em grande sofrimento, é alguém cuja razão e vontade estão necessariamente toldadas pela idade, ou pela sua dramática situação. Assim sendo, não faz sentido invocar a liberdade individual, como fundamento para a despenalização da ‘morte assistida’. É óbvio que alguém, numas circunstâncias tão vulneráveis como as referidas, pode ser mais facilmente pressionado para tomar uma decisão falsamente apresentada como a mais ‘piedosa’ para o próprio, a mais ‘caridosa’ para a sua família e a mais ‘solidária’ para a sociedade. A eutanásia presta-se à imoral exploração de uma situação de desespero, quer por familiares e amigos interessados em abreviar essa vida, quer pelas instituições sanitárias, cuja gestão economicista favoreceria a eliminação dos doentes terminais e dos idosos mais pobres que sejam beneficiários da saúde pública, porque os ricos poderão sempre pagar o apoio clínico de que carecem e que, na realidade, todos desejam.
Além do mais, a eventual “despenalização e regulamentação da morte assistida” obrigaria à reforma da Constituição e do ordenamento jurídico português. Nesse caso, não faria sentido, por exemplo, que fosse punida a escravatura consentida, a violência doméstica tolerada pela vítima, ou a venda livre e voluntária de órgãos humanos. Se se permite a ‘morte assistida’, como “uma expressão concreta dos direitos individuais à autonomia”, dever-se-ia também punir o socorro prestado aos suicidas, porque seria uma violação da sua liberdade e autonomia.
A defesa da eufemisticamente chamada ‘morte assistida’ é, na realidade, uma proposta que pretende a substituição de uma ética personalista e de uma ordem jurídica humanista, baseada no valor supremo da vida, por uma prática de exaltação da liberdade individual que, no seu limite, atenta contra a vida e a dignidade humana. A eutanásia não é um direito de ninguém, mas a violação do gravíssimo e universal dever fundamental de respeito pela vida humana inocente, que a todos obriga, sem excepção do próprio. A vida de qualquer ser humano – são ou doente, velho ou novo – é digníssima e irrenunciável, desde o instante da concepção e até ao momento da morte natural.

In Observador 2/4/2016

Autodeterminação, Liberdade e amor (P. Duarte da Cunha)

Há tempos alguém pedia ajuda a fazer algo que não era bom para ela. Diante de um pedido destes ficamos sempre na dúvida do que fazer. Sobretudo quando nos é claro que o que nos pede está errado. Se nos pede para lhe partir o braço, ou para lhe dar veneno, é evidente que não vamos ajudar, mas se nos pede para beber mais um copo de vinho e já está bêbado? E se nos pede para ajudar a roubar nos impostos?
Somos amigos e queremos ajudar, mas ajudar a fazer mal a uma pessoa de quem gostamos parece uma coisa estranha. Será mesmo em certo sentido, inconcebível, a não ser que uma pessoa não se interesse realmente pelo bem da outra. Se gostamos do outro, ajudar tem sempre em vista o bem dele. São João Paulo II propunha constantemente a cultura da vida e do amor, o Papa Francisco luta contra a generalização da indiferença: não será porque ambos querem o bem das pessoas e nos dizem que amar é o contrário de ser indiferente?

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UMA LEI QUE NÃO PODE SER MELHORADA (Pedro Vaz Patto)

No momento em que escrevo, o Parlamento acaba de aprovar uma nova versão do projeto que legaliza a maternidade de substituição. Para os proponentes, trata-se da resposta ao apelo do Presidente da República no sentido de “melhorar” a primeira versão dessa lei, suprindo algumas lacunas já anteriormente apontadas em dois pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (C.N.E.C.V.). Impõe-se afirmar, com vigor e clareza, que uma qualquer lei que legalize a maternidade de substituição não pode ser “melhorada”, porque esta é uma prática intrinsecamente contrária à dignidade humana (e, assim, contrária ao disposto no artigo 67.º, n. 2, e), da Constituição portuguesa) e nenhum enquadramento jurídico poderá obviar a isso. Os problemas que pode suscitar nunca serão resolvidos de forma satisfatória e só a sua proibição em qualquer caso os afasta. Essa proibição vigora em muitos países e também é preconizada na recente Resolução do Parlamento Europeu 2015/2229 (N), de 17 de dezembro de 2015, aprovada por larga maioria (e referida na mensagem do Presidente da República). O vigor e clareza dessa afirmação não provém apenas da área doutrinal em que me situo. Provém também de movimentos feministas de vários países (que confluem na plataforma internacional Stopsurrogacynow), os quais vêm denunciando essa prática como de exploração das mulheres mais vulneráveis, chegando a compará-la à escravatura. Essa legalização é apresentada com a marca de uma política “progressista”, quando, noutros países, muitas são as vozes tidas por “progressistas” e “de esquerda” que a rejeitam («um retrocesso social» e «o novo domínio da alienação» - de acordo com um manifesto da Fundação Terra Nova, próxima do Partido Socialista francês).
É verdade que a lei aprovada veda a exploração comercial da prática, onde residiriam os maiores riscos de exploração das mulheres pobres. O legislador não pode, porém, ignorar a realidade sociológica e o risco de tal proibição ser torneada através de pagamentos ocultos ou em espécie. Só situações de grande carência económica levam mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (não é por acaso que a prática se vem difundindo na Índia ou na Tailândia). De acordo com o manifesto feminista italiano Se non ora quando-Libere, «a “maternidade de substituição” nunca é um ato de liberdade ou de amor, é sempre um ato de desespero». Neste contexto, a gratuidade do contrato pode representar uma forma de exploração ainda mais acentuada.
Mesmo que assim não seja em situações excecionais (e nenhuma lei se destina a situações excecionais, mas às que são regra), deve sublinhar-se, de qualquer modo, que a instrumentalização da pessoa (da criança e da mãe gestante), reduzida a objeto de um contrato e de um desejo de outrem, não deixa de verificar-se pelo facto de esse contrato ser gratuito. Também pode ser instrumentalizada a pessoa altruísta e desinteressada. O aproveitamento dessa generosidade para uma prática desumana será de igual modo censurável.
O recurso a amigas ou familiares (a maternidade de substituição de proximidade) pode originar ainda mais problemas, com a coexistência de duas figuras maternas “em concorrência”. Quando há laços de parentesco, suscitam-se gravíssimas consequências que já foram designadas como “curto-circuito geracional”: a criança com uma mãe gestante que é, simultaneamente, também sua avó, ou também sua tia.
Também não colhe invocar o consentimento livre e consciente da mulher gestante. Porque em situações de grave carência e desespero, tal consentimento nunca será autêntico. E porque a dignidade humana tem uma dimensão objetiva e indisponível que impede a justificação das ofensas a essa dignidade pelo consentimento da vítima.
Por tudo isto, nem a referida Resolução do Parlamento Europeu, nem a referida plataforma feminista internacional, distinguem entre uma maternidade de substituição maligna e comercial e uma maternidade de substituição supostamente benigna e altruísta.
Com a legalização da maternidade de substituição, quer o filho, quer a mãe, são, pois, reduzidos a objeto de um contrato (seja ele oneroso ou não).
A mãe gestante não pode deixar de viver a gravidez como sua. O útero é inseparável do corpo e da pessoa, não é um alojamento temporário, ou um instrumento técnico. A mulher não é uma máquina incubadora. A gravidez não é uma atividade como qualquer outra; transforma a vida da mulher, fisica, psicologica e moralmente. Envolve toda a pessoa da mulher, pessoa que não tem um corpo, é um corpo. A instrumentalização do corpo traduz-se na instrumentalização da pessoa.
Na maternidade de substituição, o abandono da criança é, não um evento inevitável que deva ser remediado através da adoção, mas uma consequência deliberadamente programada, institucionalizada pela lei, a qual veda a obrigação mais espontânea e natural que existe: a de assumir a vida que se gerou. Impor contratualmente uma obrigação de abandono do filho que se gerou é, como afirma a filósofa feminista francesa Sylviane Agacinsky (promotora da plataforma Collectif pour le respect de la personne), «violentar sentimentos humanos profundos e legítimos» e «ferir emoções humanas elementares».
Para limitar essa tão desumana imposição, há quem proponha (e há legislações que a consagram) a possibilidade de arrependimento da mulher gestante durante todo o período da gravidez, ou até algumas horas após o nascimento. Desse modo, pode dizer-se que serão frustradas as expectativas do casal beneficiário. A lei que acaba de ser aprovada não aponta nesse sentido. Faz prevalecer, pelo contrário, os interesses do casal beneficiário, o seu suposto direito ao filho “encomendado” e a rigidez fria da vinculação contratual (pacta sunt servanda), sobre o sofrimento da mãe gestante, votado à indiferença.
Compreende-se, assim, como a contratualização da gestação se traduz na instrumentalização da pessoa. Essa lógica de instrumentalização da pessoa acarreta, com frequência, a imposição de regras de conduta durante a gravidez nos domínios mais pessoais e íntimos. Sobre esta questão, pronuncia-se também Silvanne Agacisnky (in Le corps em miettes; Flamarion, 2013, pgs. 92 e 93):
«Pedir a uma mulher para estar grávida em substituição de outra significa concretamente que ela deve viver nove meses, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, abstraindo da sua própria existência corporal e moral. Deve transformar o seu corpo em instrumento biológico do desejo de outrem, em suma, deve viver ao serviço de outrem, retirando à sua existência qualquer significado para ela própria.»
Pretendendo colmatar uma das lacunas apontadas pelo C.N.E.C.V. e pelo Presidente da República, a lei agora aprovada proíbe a imposição desse tipo de regras. Mas tal proibição pode não ser suficiente para evitar a sua imposição na prática, pois só elas são coerentes com a motivação que preside ao contrato: a contratualização da gestação, sendo que esta envolve toda a pessoa e toda a vida da mulher.
O filho é tratado como objeto do contrato. Essa circunstância, por si só, ofende a sua dignidade. Não pode dizer-se que o objeto do contrato é, antes, apenas uma prestação por parte da mulher gestante. O que pretendem, e o que move, os requerentes ou beneficiários, não é apenas a gestação, mas a entrega da criança fruto dessa gestação.
Todos os contratos de maternidade de substituição envolvem um grave dano para a criança, que sofre o trauma do abandono, a quebra abrupta da intensa relação física, psíquica e afetiva (sobre que cada vez há mais informação científica) tecida com a mãe durante todo o período da gestação. A criança fica privada do saudável reconhecimento do corpo onde habitou na primeira etapa da sua existência. Nesta medida, a maternidade de substituição representa sempre a sobreposição do desejo dos requerentes ao bem da criança.
Mas a lógica da instrumentalização (ou “coisificação”) do filho pode ir mais longe.
Outra das lacunas que a lei agora aprovada pretende colmatar diz respeito às situações em que vem a verificar-se malformação ou doenças do feto. São conhecidos casos de recusa, pelos requerentes, da criança recém-nascida portadora de deficiência, ou de exigência de prática de aborto do feto portador de deficiência. Não se trata de hipóteses académicas, mas de situações já ocorridas em vários países. A lei aprovada estipula apenas que o contrato deve contemplar a regulação desta eventual ocorrência, não excluindo, pois, que as partes possam acordar no sentido da obrigação da prática do aborto, sob pena de declinação de qualquer responsabilidade do casal beneficiário para com a criança nascida. Eis-nos perante a expressão máxima (em toda a sua crueza e crueldade) da lógica da “coisificação” do filho “encomendado” e da “cultura do descartável”: o “produto” rejeitado por “defeito de fabrico”, pela falta da “qualidade” pretendida e contratada. O filho que não vale por si, mas porque (e na medida em que) corresponde a um desejo bem determinado. E eis-nos também perante a expressão máxima de insensibilidade perante o drama da mulher gestante, a quem se impõe a violação da mais espontânea e natural das obrigações (cuidar da vida que traz dentro de si), não apenas através do abandono do seu filho, mas (mais grave ainda) através da supressão da vida deste (o aborto já não como opção, mas como obrigação).
Em suma, uma qualquer lei que legalize a maternidade de substituição nunca pode ser “melhorada”, porque, como afirmou a Associação dos Juristas Católicos em recente comunicado, «não é possível remediar o que não tem remédio», e «a proibição da maternidade de substituição é um imperativo da proteção da dignidade humana».

Pedro Vaz Patto
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
2016.07.20

Caramba! Desculpem-me a grosseria, mas é caso para isso (Mário Pinto)

É muito difícil compreender que a discussão pública sobre a liberdade de ensino e de escola dos cidadãos omita, salvo raras intervenções, a referência ao direito que rege na matéria: o da Constituição

    Então, na crise da liberdade de aprender e de ensinar agora agudizada pelo actual Governo de esquerda radical (que pretende violar os contratos de associação assinados com escolas privadas), ninguém se lembra de invocar o direito constitucional e legal que nos rege? E de exigir o seu cumprimento? Em vez disso, aceita-se discutir o assunto como se se tratasse de uma questão não legalmente vinculada? Inclusive em entrevistas de altos responsáveis, de tom apaziguador? A extrema-esquerda e as várias famílias e associações jacobinas agradecem. Mas é coisa incompreensível.

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Eutanásia: Um Regresso ao Passado (José Maria Duque)

Na antiguidade não existia a noção de dignidade da vida humana. O homem tinha o valor que a sociedade ou o Estado lhe concediam. Em civilizações mais desenvolvidas, como Roma ou a Grécia, o cidadão tinha vários direitos e estava razoavelmente protegido. Contudo, esta protecção não se estendia às mulheres, às crianças, aos jovens antes de se casar, aos escravos e aos não cidadão em geral.
                                      
Em sociedades mais primárias, como por exemplo nas tribos migrantes germânicas, a vida de cada um dependia da sua capacidade de acompanhar a migração. Por isso, regra geral, os velhos eram mortos.

Nas civilizações do próximo oriente, onde os reis eram absolutos, a vida de cada pessoa estava totalmente dependente da vontade real.

Os sacrifícios humanos eram uma realidade habitual na Europa, assim como a caça de cabeças, até à conquista romana da Gália.

Em Cartago, os sacrifícios rituais de bebés pelo fogo eram também uma tradição, só extinta com o fim da cidade.

Foi o Cristianismo que introduziu na civilização ocidental a noção de que a vida humana tinha um valor inviolável objectivo. Foi a ideia de que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, juntamente com a ideia de que Deus se tinha feito homem e morrido para que qualquer pessoa se pudesse salvar, que fez crescer o conceito de que toda a vida humana, independentemente de qualquer consideração, tinham dignidade.

Evidentemente que esta consciência não se tornou clara toda de uma vez. A expansão do cristianismo não se fez de uma forma política, mas sim através da evangelização feita de avanços e recuos. Antes de mais, a proposta cristã é uma proposta pessoal que convida à conversão pessoal.

A Igreja, sendo uma realidade divina, é constituída por homens pecadores e imperfeitos. Por isso, à proposta de Cristo muitas vezes se sobrepuseram cálculos humanos e considerações mundanas, que levaram a acções, algumas feitas em nome da fé, contrárias à proposta cristã. Mas basta comparar a Europa cristã medieval com as outras civilizações coevas, para se perceber que era um espaço de maior liberdade e respeito pelo homem do que qualquer outra.

A centralização do poder do Estado, a Reforma, a Contra-Reforma e as guerras religiosas conduziram a uma politização do cristianismo. A fé passou a ser um facto político, de uniformização nacional, garante da paz e da ordem. Este facto reduziu o cristianismo a uma conjunto de valores e rituais, independentes da fé.

Criou-se então um núcleo de valores comuns aos vários países europeus. Valores esses que se mantiveram mais ou menos constantes até ao século XIX. A Revolução Francesa marcou um inicio de uma nova era. Uma ideologia pós-cristã, onde o homem foi substituído pelo povo ou pelo Estado ou pela Nação. A evolução desta mentalidade pós-cristã foi avançando na Europa em diferentes direcções e com velocidades diferentes. Mas as consequências foram tremendas e tiveram o seu ponto mais dramático nos totalitarismos do século XX: o Comunismo, o Nazismo e o Fascismo.

Mas, ao mesmo tempo, também se desenvolveu uma outra mentalidade pós-cristã, mais subtil, mas também destruidora. Uma cultura que utiliza as palavras cristãs (liberdade, dignidade, fraternidade, autonomia) e lhes dá um novo significado. Foi esta mentalidade que triunfou fulgurosamente no pós-guerra, sobretudo após o Maio de 68.

Vivemos por isso num tempo em que, sobre o manto do progresso, voltamos à antiguidade. A um tempo em que a vida humana deixou de ser um valor objectivo, mas voltou a estar dependente do valor que a sociedade lhe atribui.

Esta mentalidade começou a instalar-se com a questão do aborto. Toda a "publicidade" pró-aborto se baseia no facto de que o embrião necessita de um conjunto de premissas para merecer protecção jurídica. Já não basta ser vida humana, tem que ter sistema nervoso central, ou que sentir dor, ou que ter batimentos cardíacos ou mesmo que interagir com os outros. Ou então, que ter um desenvolvimento perfeito. Se assim não for, então não tem valor e pode ser eliminado.

O caminho continuou a ser feito com a ideologia do género que afirma que cada homem é que constrói o seu próprio género, mesmo contra a natureza, se for preciso, porque o homem (ou seja a sociedade, o Estado, o poder) tem o poder de se definir a si mesmo.

Por fim, chegámos à eutanásia. E eutanásia vem no fim porque é uma conjugação das falácias do aborto com as falácias da ideologia do género.

Do aborto, porque retoma a ideia de que a vida humana só tem dignidade quando existem um certo número de requisitos. Fora disso, a vida passa a ser um bem disponível.

Da ideologia do género, porque leva ainda mais longe a ideia da autonomia. O homem não só tem liberdade para se definir a si mesmo, como tem liberdade para decidir quando deve morrer. E esse "direito" deve ser assegurado pelo Estado.

Ora, dois mil anos de história, demonstram que estas premissas são falsas. A vida humana tem valor e dignidade pelo simples facto de ser vida; o homem não tem o direito de se violentar a si mesmo; o Estado não pode nem deve permitir ou executar violência sobre os cidadãos, mesmo que a pedido dos próprios.

Negar estes princípios é regressar ao tempo em que o homem era definido pelo poder. Conceder ao Estado o direito de matar quem sofre, é o regresso à mentalidade bárbara dos povos germânico que eliminavam os mais fracos para seu próprio bem.

Por baixo de uma retórica glicodoce, de um discurso que mistura um falso sentimentalismo com uma falsa defesa da dignidade humana, utilizando e abusando do sofrimento de milhares de pessoas, os defensores da eutanásia defendem uma sociedade onde a vida humana já não tem qualquer valor.

A questão que se coloca é: como resistir a este avanço aparentemente inexorável desta cultura pós-cristã? Como podemos lutar contra esta nova mentalidade, que nega até as verdades mais elementares?

É evidente que há uma resposta política, que pode e deve ser dada. Independentemente da hipótese de vitória ser reduzida, é um dever tentar travar as leis injustas. E por isso, em chegando o momento, iremos à batalha com todas as nossas capacidades. Mas a verdade é que os proponentes da eutanásia têm mais dinheiro, mais apoio político e mais influência na comunicação social do que nós. Por isso a derrota, agora ou daqui a uns anos, é aparentemente inevitável. E isto não nos deve desincentivar. Porque defender a verdade é um bem em si mesmo, que não depende do resultado final.

Mas a luta política não chega. Porque o problema não é político, mas sim cultural. Por isso a pergunta é como é que pudemos mudar esta cultura, que nega até as maiores evidências?

A resposta é olharmos para o modo como Cristo construiu a Igreja. No tempo de Jesus havia também enormes problemas políticos: escravatura, jogos de gladiadores, um sistema tributário injusto, poderes corruptos, etc. Porém, Jesus não perdeu tempo a pregar a revolução social. Usou o seu tempo para testemunhar a Verdade. Escolheu uns quantos e disse-lhes para O seguirem. E assim começou a maior revolução da História.

Por isso, também nós temos que voltar atrás. Olhar para os primeiros cristãos, olhar para São Bento, olhar para São Francisco de Assis e São Domingos, para São Francisco Xavier, para São Vicente de Paulo, para São João Paulo II, para a Beata Teresa de Calcutá e para tantos outros santos. Eles perceberam que antes de mudar a sociedade é preciso converter o coração do homem e para isso era preciso, antes de tudo, testemunhar Cristo, O único capaz de responder plenamente ao desejo humano.

In Nós os poucos | 2016.02.11