A liberdade do silêncio (José Luís Nunes Martins)

Falamos de mais. Damos, tantas vezes, a nossa opinião mesmo quando ninguém a pediu, mesmo quando talvez ninguém se possa interessar por ela. Como se o silêncio fosse pior... Na verdade, as nossas palavras prendem-nos. Por falarmos mais do que devemos, acabamos por nos tornarmos em quem não queríamos ser. Há quem pareça gostar tanto da sua voz que aproveita o tempo em que devia escutar os outros para pensar no que lhes dizer depois... Não escutam. Falam apenas. De mais. Como pode saber falar, quem não sabe calar?

No silêncio há mais paz. Mais liberdade. Escuta-se melhor tudo o que está à nossa volta. O que dizem os outros e o que não dizem. Até se vê muito melhor.

A praça pública é ruidosa e indiferente. Curiosa, quer saber muito, mas tudo esquece e bem depressa.

Importa que sejamos capazes de guardar para nós e para quem nos pede as nossas palavras. Até mesmo quando sejam as mais acertadas, devem apenas ser ditas se alguém as quiser escutar... Caso contrário, o melhor será sempre o silêncio. Até porque ter razões não é ter razão.

O silêncio é o lugar do amor. A verdade não se diz, faz-se. Cumpre-se. Em gestos tão simples como escutar, sofrer, contemplar, perdoar e agradecer.

Afinal o ponto mais elevado da nossa existência está no mais profundo de nós. O silêncio é a luz para lá chegarmos.

In Facebook, 2015.10.24

O TEMPO NÃO É NOSSO (José Luís Nunes Martins)

O amor não é uma corrida contra o tempo. Nem contra o mundo. É contra nós. Ou melhor, contra o pior de nós. O egoísmo.
A vida precisa de tempo, mas não há pior do que adiar... muitos julgam que o momento de amar pode ser outro. Que sempre haverá tempo depois do tempo. Errado. O tempo não é nosso e que, portanto, não está ao nosso dispor.
Vamos podendo desfrutar do tempo, mas nunca por direito.
Somos livres no tempo, mas o tempo não é nosso. Somos responsáveis pelo que fazemos, o que significa que devemos ser capazes de responder perante alguém. Mesmo a sós, temos a obrigação de esclarecer os fundamentos das nossas decisões a nós mesmos... Pese embora muitas vezes a verdade esteja toda na resposta simples: - Não sei!
Amar é caminhar rumo ao fim dos tempos, destruindo essa porta que separa este tempo do outro. O que há de vir. Aquele de onde todos chegámos aqui. Aquele aonde todos voltaremos. Esse mesmo, a eternidade que repousa por debaixo de cada dia. O antes do passado. O depois do futuro.
O que sou constrói-se num diálogo dinâmico entre mim e o que existe para lá de mim, o outro e o mundo.
O amor leva-me ao outro. Supero os meus limites, do espaço e do tempo. Porque me dou, passo a existir também no que me ultrapassa. Sou mais. Só o amor permite a conquista da eternidade. Só o amor resiste ao nascimento e à morte. Qualquer vida que nasce brota de um amor, de uma entrega gratuita e incondicional de algo ao espaço e ao tempo sem fim. Mas existir em plenitude só é possível se formos capazes de entregar esta vida, toda. Sem esperar nada em troca. Sem buscar outra recompensa que não a de saber que nos entregamos à eternidade da mesma forma que a eternidade nos confiou a este mundo.
O mistério da nossa existência passa por assumirmos o - Não sei. Por cuidarmos de não adiar nada de importante. Por garantirmos que fazemos o que de bom é possível, assim que é possível. Julgar que o amanhã é certo não só é uma tolice como também é uma forma evidente de não merecer o hoje.
Em muitas vidas o tempo dura, dura e dura. Estende-se. Talvez por isso haja quem não saiba entender que não há dias iguais. Que só por um dia suceder a outro, isso não garante que lhe seja semelhante. Ser, existir, é viver e dar vida. Dar a vida. Dar-se ao amanhã como se não houvesse amanhã.
Sentir o hoje. Esquecer o ontem, mas assumi-lo. Não sonhar com o amanhã, mas construir o melhor amanhã de que formos capazes.
Se tudo pode acabar já hoje, e por isso importa esgotar o que somos e queremos ser sem poupanças... importa sabermos que também é possível que duremos ainda muito no tempo por aqui. A nossa vida não nos pertence. Somos uma parte do todo. Não o centro. Não estamos vivos, somos vida. Uma vida cheia de mistérios, mas de beleza sublime. Podem as lágrimas e sofrimentos parecer a eternidade... mas só o bem não tem fim.
Nem sempre somos capazes de compreender o bem que somos, o bem que nos acontece, o bem que há em tudo.
O amor faz-nos renascer a cada vez que parece matar-nos. Fazer um caminho é construí-lo onde não existe e é necessário. Existir é dar vida à vida. Tudo o mais é... nada. Dizer que não ao amor é negar-se a si mesmo. É privar-se de si. Anular-se. Fazer-se nada.
Não sabemos de que tempo chegámos, nem para que tempo vamos. Mas chegámos e vamos. Não sabemos nem quando, nem onde. Mas a nossa essência não deixa margem para dúvidas: não somos nem um acaso nem algo sem sentido.
Importa compreender e viver a profundidade do tempo. Tal qual ele é. Tal qual nós somos. Infinitos.
Somos mais do que tempo. Muito mais.

In Facebook, 2015.07.18

AS RAZÕES DA SINCERIDADE (José Luís Nunes Martins)

Há quem não oculte as suas falhas. Há quem prefira ser pouco, mas inteiro, do que ter de se misturar com impurezas para parecer maior. Há quem nunca se molde às situações ao ponto de se tornar outro, perdendo-se de si mesmo. A sinceridade é a qualidade essencial do que, não sendo perfeito, é ainda assim valioso, porque real e autêntico.
Ser sincero é mais do que ter um gesto exemplar ou uma palavra verdadeira. É ser inteiro em cada decisão, em cada palavra… Ser sincero é uma escolha que se renova a cada hora.
Todos falhamos. O erro é um sinal evidente de que somos limitados, mas é também o ponto a partir do qual cada um revela o que é. Uns ignoram, outros preferem desculpar-se, culpando quem não tem culpa. Outros ainda, poucos, reconhecem os seus erros e procuram emendar-se, não através de disfarces ou pinturas da superfície, mas de uma mudança mais profunda.
Só quem decide ser forte consegue chegar a ser sincero. É duro e supõe uma elevada capacidade de sofrimento. Por isso, não é algo que se deva esperar de pessoas fracas e pobres de vontade.
O sincero consegue resistir à maldade e seguir a direito, mesmo quando só parece haver caminhos tortos. Escolhe ser puro e inocente, pela força e coragem com que resiste a tudo o que o seduz e ameaça, mas que, na verdade, apenas o quer diminuir através da culpa.
Há pessoas que não procuram artifícios na sua relação com os outros, revelam-se tal como são.
Nunca é uma boa opção ocultar os nossos defeitos. Quem se delicia com as belas aparências raras vezes se importa com o que tem valor profundo. Assim como quem se preocupa com o valor real sabe que não há gente sem defeitos, fendas e fraquezas, e que a verdadeira integridade é a de nos reconhecermos como somos, não porque sejamos melhores, mas porque não queremos ser piores, criando ilusões.
Uma pessoa sincera é igual a si mesma. Cresce, mas mantém-se fiel à sua pureza original. Não cria equívocos, embora prefira reservar para depois o que tem de melhor.
Outros são os que se viram e reviram, dão voltas e mais voltas sobre si mesmos, a fim de, rastejando sempre, tentarem chegar ao que não é seu, ao que não são... apenas porque não têm força nem coragem para o ser. Escolhem o mais fácil: preferem parecer do que ser. Não se dão conta de que, por esse caminho a descer, não há senão vazios mascarados de coisas grandes.
Quando a uma verdade se acrescentam umas quantas meias verdades, com intenção de que a mistura passe depois por pura e valiosa, o que se obtém é apenas uma mentira requintada. E, por mais apurada que seja, não deixará jamais de ser uma impureza.
Não é fácil dobrar alguém sincero e honesto. Porque, apesar do sofrimento que isso lhe custa, saberá que a verdade é sempre maior do que a malícia dos que tentam o que for preciso para que ninguém seja senão como eles.
A hipocrisia é mais comum do que a sinceridade. É preciso crescer muito, ao ponto de nos tornarmos capazes da verdade mesmo depois das mentiras. Afinal, são as mesmas máscaras que nos escondem o que nos impede de ver o mundo e os outros tal como são...
A sinceridade jamais pode ser a razão para magoar alguém. Ser sincero é também saber escolher o que dizer e o que calar. Não devemos dizer tudo quanto pensamos, mais ainda se não o tivermos pensado com honestidade e inteligência. O silêncio é parte essencial da verdade e da sinceridade.
Se há palavras que são gestos dignos de louvor, também há palavras que só chegam a ser boas se forem cumpridas pelas mãos dos que ousam dizê-las.
Uma boa ação, ou uma palavra verdadeira, não perdem o seu valor só por ninguém o reconhecer... Parte da dureza da sinceridade é o abandono a que remete os sinceros… aqueles que se decidem a seguir pelo caminho que ruma ao céu. A direito.

In Facebook, 2015.06.06

Uma religião à medida do «New York Times»? (José Maria C.S. André)

O Papa Francisco continua a sua catequese sobre a família. Em vez de criticar, propõe a grandeza da vocação familiar; em vez do peso das tentações, prefere falar das exigências maravilhosas do amor. Alguns jornalistas só perguntam se é proibido, mas em muitos ambientes a mensagem profunda e optimista da Igreja vai passando.
Neste contexto positivo, os desafios ganham sentido: «a fidelidade ao Evangelho da vida e ao respeito da vida como dom de Deus, às vezes exigem escolhas corajosas e contracorrente» – diz o Papa (15-XI-2014). O plano de Deus é tão maravilhoso que é uma pena deixarmo-nos enganar; não podemos olhar as tentações como quem suspira por um paraíso proibido; as tentações são uma miragem de felicidade: «Às vezes o pensamento dominante propõe uma “falsa compaixão”: como se favorecer o aborto fosse ajudar a mulher; ou a eutanásia fosse um acto de dignidade; ou “fabricar” um filho fosse uma conquista científica, em vez de se acolher o filho como um dom; ou usar vidas humanas como material de laboratório com o pretexto de eventualmente curar alguém» (ibid.).
A mensagem sobre a misericórdia e o Sacramento da Confissão permite entender muitas coisas. Explica o Papa, «é importante que as pessoas divorciadas e recasadas frequentem a igreja. Então simplificam e concluem “ah! vamos dar a Comunhão aos divorciados”. Isso não resolve nada. Aquilo que a Igreja pretende é que eles se integrem na vida da Igreja». E se as pessoas só querem mesmo comungar? O Papa é claro: «...Ora! Um colar ao peito, uma condecoração. Não. O que precisas é de te reintegrar. As pessoas em segundas uniões não estão em condições de fazer algumas coisas» (14-III-2015). Importa acolher, «acompanhar os processos interiores» (14-III-2015), ajudar as pessoas a superar alguma situação, até ficarem em condições de receber a absolvição sacramental.
O Papa Francisco acaba de nomear duas figuras importantes para o apoiarem nesta catequese de promover a exposição clara da doutrina da Igreja. É interessante perceber essas escolhas. Uma delas é o recém-nomeado Arcebispo de Sydney, Anthony Fisher OP. Tem 54 anos, formou-se em Direito, exerceu advocacia, estudou Teologia, doutorou-se em Oxford, foi professor na universidade e ganhou fama na Austrália pela simpatia e frontalidade da sua catequese. Este estilo levou muita gente a converter-se e aumentou as entradas no seminário. O seu lema episcopal é «Veritatem facientes in caritate» (dizer a verdade com amor) e, realmente, vai direito aos assuntos, com o dom da simpatia.
Declara abertamente que «a nossa única função é ensinar o Evangelho de Jesus Cristo, não estamos aqui para construir a nossa própria religião de acordo com as modas ou com o que o “New York Times” pretende». A verdade é que este estilo directo cai bem entre os jornalistas, incluindo os do NYT, e a juventude australiana adoptou-o como uma espécie de ídolo. A sintonia do Arcebispo de Sydney com o Papa é particularmente evidente: ambos gostam da perspectiva positiva e de propor grandes desafios.
Fisher sabe provocar sem ofender: «No fundo, acho que muitas pessoas não sabem amar muito bem. Falta-lhes o sacrifício de amar, têm medo do compromisso do amor, da vulnerabilidade de quem ama, das consequências do fracasso».
Facilidades? «Esperamos, ansiamos grandeza para ambos, e heroísmo para ambos, e felicidade para ambos». «Não basta contribuir para um certo equilibrismo de “bem” e de “mal” (...). Queremos mesmo que as pessoas façam coisas grandiosas». Para explicar o amor, dá o exemplo da mãe que se levanta a meio da noite quando o bebé chora, embora lhe custe, porque sabe que tem uma missão a cumprir. «Afinal, aquilo é amor, por isso a mãe persevera nesse sacrifício».
«Muitas vezes se reduziu o amor, ao torná-lo romântico, sentimental, explorando-o comercialmente de várias maneiras. Por isso, às vezes as pessoas têm uma perspectiva do amor cheia de emoções, de calor, de um sentimento nebuloso cá dentro, quentinho e nebuloso, focado obsessivamente numa pessoa, retirando determinadas satisfações dessa relação. Anda-se a vender essa visão de “dia dos namorados” como se fosse amor. Totalmente ao contrário do amor que Cristo nos mostrou na Cruz».
A ideia a transmitir é que um amor a sério vale a pena. Um momento de dificuldade pode ser um momento de grandeza. Deus ajuda. Vale a pena.
Segundo o Arcebispo, o sínodo vai servir para os católicos apreciarem o amor na família. «Esse amor até ao sacrifício de si mesmo, personificado por Jesus Cristo na sua Semana Santa e na sua Páscoa por nós, esse é o tipo de amor que precisamos de reaprender e ensinar ao mundo».
Aos poucos, a mensagem vai passando, na medida em que cada um se dispõe a ouvi-la.

In «Correio dos Açores»

Gostava de ter um programa assim onde votar. Mas não vou ter. (José Manuel Fernandes)

Gostava de políticos que em vez de prometerem fazer, prometessem deixar fazer. E gostava de um país onde os cidadãos, em vez de pedirem tudo ao Estado, assumissem mais responsabilidades no seu destino
  1. Duas entrevistas. Pedro Passos Coelho. António Costa. As linhas gerais de um programa eleitoral: o do PS. Muitos jogos florais, troca de galhardetes, mas ao mesmo tempo um tremendo vazio. O que os principais partidos portugueses nos têm para oferecer são apenas graus diferentes, ou velocidades diferentes, de regresso ao passado, ao país de antes da crise.
    Com mais juízo e menos desvarios, com formas diferentes de verem a retoma da economia, mas sem nenhum dos dois partidos ter a ousadia, a frontalidade, de dizer aos portugueses que não é possível voltar ao antigamente, aos “direitos adquiridos” para sempre, aos contratos de trabalho para a vida, ao mundo previsível, protegido, mas irremediavelmente falido, que foi o nosso até ao dia em que tivemos de pedir ajuda externa. A questão não é apenas voltar ou não às grandes obras públicas, ou fazê-las por “consenso alargado” – a questão, a grande questão, é que temos um modelo de Estado, e um modelo de relacionamento do Estado com a economia, que tem de ser profundamente revisto. Mas disso não se fala.
    Gostava que nas próximas eleições tivesse um programa no qual pudesse votar com entusiasmo e convicção – já comecei a perceber que a escolha vai ser entre um mal maior e mal menor. Se chegar a ser.
    O que realmente gostava é que se percebesse que a nossa crise não existe apenas por causa da bebedeira dos juros baixos, da ineficiência de uma economia acomodada a um mercado interno protegido e, claro, dos desvarios de José Sócrates. Ou da crise financeira global que foi o detonador das crises que vieram depois. É altura de perceber que isso não explica tudo. A nossa crise, como a crise que, em diferentes dimensões e modalidades, tem persistentemente condenado as economias desenvolvidas, com poucas excepções, a crescimentos anémicos, decorre de mudanças radicais que exigem soluções também radicais.
  2. O que não nos dizem é que, mesmo depois de regressarmos aos mercados ou de retomarmos um crescimento inevitavelmente tímido, continuamos sentados em cima de uma bomba relógio. Uma bomba relógio política, pois é cada vez mais difícil – ou tem-se mostrado cada vez mais difícil – tomar decisões estruturais e obter consensos alargados, uma vez que grande parte das nossas sociedades, e da portuguesa em particular, está entrincheirada em qualquer forma de benefício (das “rendas” dos grandes oligopólios às “rendas” de casa subsidiadas de “pobres” para a toda a vida, passando pelas “rendas” dos pilotos da TAP ou dos trabalhadores do Metro). Difícil também porque a democracia tem dado lugar à demagogia, o realismo cede terreno face ao populismo, a transparência tornou-se obsessiva bisbilhotice, o debate político e ideológico parece ter-se transferido para o tribalismo grotesco das redes sociais e das suas reacções viscerais (também lhes chamam “virais”).
    Todos sabem que temos uma demografia extremamente desfavorável. Que isso vai fazer aumentar a pressão não apenas sobre o sistema de pensões, mas também sobre a rede de serviços sociais e de cuidados de saúde. Todos sabem que temos um Estado demasiado preocupado, e ocupado, com micro-regulamentos que pretendem comandar tudo, impor normas a tudo, tal como sabem que sempre que ocorre um desastre inesperado se vem logo dizer que falta mais uma lei ou um novo regulamento qualquer.
    Todos também sabem que somos um país pequeno, uma economia muito aberta, e que enquanto não produzirmos e exportarmos mais, qualquer aumento do consumo interno pode criar a ilusão de um crescimento da economia, mas uma ilusão com dramáticas consequências no défice externo e numa dívida que, considerando o Estado, as empresas e as famílias, é a maior de toda a OCDE (370% do PIB, quase quatro anos de tudo o que produzimos em Portugal).
    Face a isto, o que nos propõe o PS são paliativos, aspirinas que talvez ajudem a mascarar a doença, mas que são ao mesmo tempo apostas arriscadíssimas que, podendo bater certo nas contas dos macro-economistas, não batem certo com uma economia que necessita de se abrir muito mais à concorrência e ao exterior.
    Face a isto, o que até agora nos tem proposto a actual maioria é apenas prudência, para não estragar o que foi, goste-se ou não, um duro reajustamento, um penoso regresso aos números positivos e a introdução de algumas (poucas, insuficientes) reformas.
  3. Gostaria de algo bem diferente. Gostaria de que ficasse claro que não é possível manter o nosso modelo de Estado Social, em que o Estado não é apenas o garante das prestações essenciais, mas antes o quase universal prestador de serviços. Gostaria que ficasse claro que vamos ter de viver numa sociedade menos regulada, com todos os riscos que isso implica, com todos os interesses que vai desalojar, mas também com todos os benefícios que pode trazer – de serviços como a Uber à forma como a Booking e outros sites permitiram a tantos portugueses que começassem a alugar (e a recuperar) as suas segundas habitações.
    Gostaria de ir muito, muito mais longe. O Serviço Nacional de Saúde não pode continuar a ser visto como o prestador universal de cuidados, até porque isso já é uma imensa mentira. A escola pública não pode continuar a ser vista como um serviço do Estado, centralizado na 5 de Outubro e condicionado pelo Mário Nogueira. O direito às pensões não pode continuar a não ter limites, a obrigar o Estado a ser responsável tanto pela imensidão de pensões miseráveis como pelo pagamento de pensões muito altas para o nosso padrão de vida. Devolver a organizações da sociedade civil, de todo o tipo, funções que o Estado tem chamado para si, não pode ser encarado como uma forma de beneficiar amigos (como tantas vezes sucede), antes como o único caminho possível para prestar melhores serviços de proximidade, sem políticos a interferirem. A ideia de que “solidariedade social” é igual a serviços público e que o resto é “assistencialismo” tem de ser vista como um arcaísmo tão desajustado como a do “planeamento central da economia”.
    O Estado, tal como hoje existe, com as funções que tem, com tudo aquilo que se lhe pede – e em Portugal, país que sempre gostou de se encostar ao Estado, chamasse-se ele Paço Real ou Ministério da Economia, pede-se-lhe sempre mais  mais – está condenado continuar a consumir recursos crescentes se não alterarmos a sua lógica. Mas como não voltará a haver o dinheiro fácil do passado, o Estado estará condenado a uma espécie de “austeridade para mil anos”, como o Reich que Hitler imaginou mas virado do avesso.
  4. A reforma do Estado, de que tanto se fala sem nada de substancial propor, tem de passar pela devolução de funções que hoje estão concentradas nos ministérios e dependem de decisões políticas, transferindo-as para níveis inferiores da administração pública, para organizações da sociedade civil, para os cidadãos, as famílias, as empresas.
    Em muitos domínios isso passa pela co-responsabilização dos cidadãos. Isso já começou a acontecer na área da Saúde, onde a rede de seguros privados complementa, com vantagens mútuas, o recurso exclusivo ao SNS. Isso pode acontecer em muito mais larga escala na Educação. Isso tem de suceder, com urgência gritante, no sistema de pensões, onde quem quiser um dia beneficiar de uma reforma mais elevada terá de encontrar sistemas alternativos e complementares.
    Hoje o Estado ocupa-se da colocação de todos os professores do país, porque é isso que dá aos sindicatos o poder que eles têm e porque é isso que é a cultura dos serviços e o destino dos ministros. Não faz nenhum sentido. Tal como não faz nenhum sentido continuarmos a falar numa espécie de “contracto colectivo” dos médicos, ou dos professores universitários, a que damos pomposamente o nome da “carreiras médicas” ou de “estatuto da carreira docente”, tudo naturalmente supervisionado pelo político de serviço, que tanto pode ser competente e rigoroso, como pode ser cobarde ou mesmo venal.
    Hoje confunde-se informatização dos serviços e desburocratização com lojas do cidadão, quando o que devia estar a ser feito era a desmontar as toneladas de legislação que dizem como um restaurante deve arrumar o seu frigorífico, quantos centímetros devem distar as torneiras num balneário de uma fábrica ou a que altura se pode colocar um interruptor eléctrico.
    Infelizmente não é isso que pede a gritaria das redes sociais, não é isso que está na cultura da administração pública, não é nisso que pensam os políticos.
  5. Um programa deste tipo não é totalmente estranho ao que já está a ser feito, um passo aqui, outro além, em países como o Reino Unido, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia, mesmo a Alemanha ou a Suíça. Não é uma utopia, é uma necessidade e, ele sim, exige uma visão sobre o que será o nosso futuro, para onde caminhamos. Uma visão para a próxima década e para as seguintes.
    Eu não quero que os políticos me digam que a sua visão é, por exemplo, a de um país mais qualificado – quero que os cidadãos sigam por esse caminho porque têm os incentivos certos.
    Eu não quero que os políticos me digam que a aposta tem de ser nas empresas de tecnologia e criem para isso novos subsídios (esse eufemismo para “rendas”) – quero que as empresas, habituadas à concorrência, escolham o seu caminho, que tanto pode ser a produzirem ostras como reinventarem uma indústria como a têxtil.
    Eu não quero que a obsessão pela igualdade acabe na limitação da liberdade de procurar ter sucesso – quero sim que essa liberdade venha com mais responsabilidade e que o Estado se ocupe mais e melhor dos que realmente necessitam em vez de tremer como varas verdes perante a mais pequena gritaria de um grupo de “reformados VIP”.
    Eu não quero um Estado que cobra impostos sobre tudo o que se move; que quando isso não chega para paralisar a actividade e limitar a ambição e a inventividade, cria logo novos regulamentos; que, quando finalmente tem tudo controlado, passa a subsidiar o que não funciona; e que acaba sempre falido, pois essa é a fatalidade de quem tudo quer controlar.
  6. Lenine dizia que ter confiança é bom, mas que ter controle é melhor. Ora o que precisamos é de não ser leninistas. No fundo, de não sermos tão socialistas, estatistas e intervencionistas como somos, e de perceber que numa sociedade em tão rápida mutação como é qualquer sociedade moderna, o Estado move-se sempre mais devagar e só pode atrapalhar se quiser limitar e enquadrar todos os riscos e regular todas as nossas vidas. Só que viver com mais riscos e mais responsabilidades é algo que, quero crer, os portugueses acabarão por preferir a este pântano que se eterniza.
    Infelizmente, repito, não creio que em Outubro tenha a possibilidade de votar num programa assim, de real mudança, com visão de futuro, sem medo do passado.

In Observador 2015.05.24