Não podemos ignorar (Raquel Abecasis)

Ficamos todos a saber que os socialistas pretendem alterar profundamente a estrutura da nossa sociedade. Assim, quando e se isso acontecer, ninguém se pode queixar de estar a ser enganado.

Na hora de analisar o programa do PS, há algumas notas positivas, ou nem tanto, que devem ser tidas em conta:

    É uma boa proposta a de impor uma maioria de dois terços para a aprovação de grandes obras públicas e a criação também de um Conselho Superior de Obras Publicas. Espera-se que esse Conselho seja, de facto, independente e com poderes efectivos. No detalhe, como todos sabemos, está muitas vezes o diabo. Esta é uma medida a pôr em prática logo nos primeiros dias de governo, caso contrário é duvidoso que o venha a ser, dados os inúmeros e poderosos interesses que sairão prejudicados.
    É também um bom sinal que o PS volte à carga com a ideia da reforma do sistema eleitoral, embora aqui tenha ainda mais dúvidas de que seja desta. A promessa, como todos sabemos, dura já há várias legislaturas, mas os partidos do sistema preferem continuar a insistir na manutenção do seu poder cada vez menos legítimo. Eleição após eleição, o nível de abstenção aumenta e no dia em que se tornar inevitável uma mudança ela virá já tarde demais, pelo menos no que diz respeito aos actuais políticos. É a vida!
    Finalmente é muito positivo que o Partido Socialista diga ao que vem em matéria de projecto de sociedade. No programa, está bem clara a opção pelo fim de toda e qualquer restrição à adopção por casais homossexuais, a eliminação das restrições de acesso à procriação médica assistida, assim como a intenção de dar estatuto legal a um novo género das pessoas intersexo (vá-se lá saber o que isto quer dizer) e de melhorar o quadro legislativo para as pessoas transsexuais e transgénero. Ao contrário das medidas atrás descritas, estas seguramente serão aprovadas com celeridade, caso o PS ganhe as eleições, por isso é louvável que as ponham desde já no papel. Ficamos todos a saber que os socialistas pretendem alterar profundamente a estrutura da nossa sociedade. Assim, quando e se isso acontecer, ninguém se pode queixar de estar a ser enganado.

Como disse Sophia de Mello Breyner: "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar."

In RR online 21-05-2015

Laicidade, religiões e paz (Pedro Vaz Patto)

As religiões, quando não são instrumentalizadas por projectos políticos ou ideológicos, são factor de coesão social, reconciliação e paz.

Várias notícias recentes provindas de França revelam um nítido recrudescimento da chamada “laicidade de combate”.
Mais do que a laicidade como simples separação da Igreja do Estado (o evangélico dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus) e a confessionalidade ou neutralidade religiosa do Estado, está em causa o laicismo, como profissão de fé ideológica, da parte do Estado, de hostilidade à religião, relegada para a esfera privada e cuja dimensão social e cultural é ignorada, desprezada ou combatida.
Uma decisão judicial ordenou que fosse retirada do espaço público uma estátua de João Paulo II, porque a dimensão da cruz que a acompanha será “ostensiva”. E o autor recusou que da estátua fosse eliminada a cruz. Compreende-se: não pode conceber-se sem a Cruz o testemunho da vida desse Papa que foi reconhecido, também por não católicos, como “um gigante da história contemporânea”. Mas não são menos “ostensivas” as igrejas e catedrais que, invariavelmente, marcam, como ex-libris, as paisagens de aldeias e cidades francesas e europeias.  
A lei que proíbe “sinais ostensivos” de pertença religiosa nas escolas foi invocada para proibir uma jovem muçulmana de usar uma saia demasiado comprida. Um contraste tão grande com os hábitos correntes só pode ter por base a pertença religiosa muçulmana. A escola, que agora tolera a indumentária mais bizarra ou impudica, já não tolera o que possa ser, mesmo que de forma remota ou ambígua, uma manifestação de fé religiosa. Todas as convicções podem ser reveladas publicamente, em nome da autenticidade e da transparência, mas não a religião. Já não há “direito à diferença”: os muçulmanos têm de vestir como todos os outros. E não será assim que a sua integração será facilitada; será mais forte a tentação de se fecharem em ghettos, rejeitando a cultura europeia no seu todo, para preservarem a sua identidade
Discute-se a proposta de alargar o campo dessa lei às universidades, como se os jovens universitários fossem tão influenciáveis pelo “proselitismos religioso” como pretensamente o serão os jovens de outros ramos do ensino. E também se discute uma lei que obriga à neutralidade religiosa do ensino pré-escolar, que alguns querem estender a escolas não estatais que recebam fundos públicos. Chega a ser invocado o respeito pela liberdade de consciência de crianças de três ou quatro anos.
Um movimento cívico pretende alterar o nome de localidades que tenham o nome de santos. Uma tarefa ambiciosa, pois calcula-se que sejam cerca de dez por cento das pequenas localidades francesas. Assim se procura impor coercivamente o renegar de uma herança cultural, impor o cancelamento da memória histórica colectiva.
É fácil associar este recrudescer do laicismo aos recentes episódios de terrorismo com motivação pretensamente religiosa. Quem considere que as religiões são necessariamente factor de conflito e violência quer ver nesses episódios a confirmação dessa tese. Daí que elas devam ser afastadas do espaço público, a bem da convivência pacífica. Mas outras violências assim se geram.
De um princípio exactamente oposto partiu um “debate temático de alto nível” no âmbito das Nações Unidas, que decorreu no passado dia 22 de Abril, sobre o papel das religiões, e do diálogo inter-religioso, no fomento de uma cultura de tolerância e reconciliação, contra o extremismo violento. As religiões, na sua autenticidade, quando não são instrumentalizadas por projectos políticos ou ideológicos, são factor de coesão social, reconciliação e paz. Não há, por isso, que temer a sua presença no espaço público. Pelo contrário, há que valorizar o seu papel, e o papel do diálogo e colaboração entre crentes de várias confissões. Isso mesmo reconheceram nesse debate quer os dirigentes religiosos presentes, quer os representantes das Nações Unidas e de muitos Estados que nele intervieram.
Um desses dirigentes religiosos, Maria Voce, presidente do Movimento dos Focolares, relembrou: “A guerra nunca é santa e nunca o foi. Deus não a quer. Só a Paz é verdadeiramente santa, porque o próprio Deus é a Paz”.

In Observador 25/05/2015

Jornal das Boas Notícias 30

As Boas Notícias de Abril 2015

Conto de Páscoa (João César das Neves)

Fui visitar o meu amigo Vasco, que há uns meses fora nomeado administrador de uma grande multinacional. Do seu gabinete, no último andar da torre, tinha-se uma vista deslumbrante da grande cidade. Admirava eu o espectáculo quando ele murmurou.
"Do alto da cruz vêem-se todos os reinos do mundo."
Perante o meu espanto, explicou: "Sabes onde estás? Vê ali na parede. Aquele crucifixo marca este gabinete como o Calvário. Aqui é uma parte do Calvário; do grande Calvário que existe espalhado por todo o mundo. Jesus está crucificado e eu estou aqui crucificado com ele. Aqui é também o Calvário, como em milhões de outros locais, onde Jesus é hoje crucificado connosco. Aliás, como eu levo sempre um pequeno crucifixo no bolso, em todo o lado onde vou é também o Calvário. Na sala do Conselho, nos restaurantes onde faço as negociações, nas reuniões e nas fábricas que visito. Também aí está Jesus crucificado, e eu crucificado com ele."
"Julgava que gostavas deste posto!", disse eu espantado.
"Claro que sim. Mas sabes qual foi a primeira coisa que disse quando fui convidado? O que me veio à cabeça foi: "Primeira estação - Jesus é condenado à morte." Mais uma vez na minha vida começara a Via-Sacra. Assim este emprego faz parte da minha crucificação em união com a execução de Cristo. Nem queiras saber como isto me ajuda nos momentos maus, e são muitos, animando-me, pondo--me acima do sofrimento; porque, afinal, eu já estou crucificado, à espera da morte e ressurreição. Mas também me ajuda muito nos momentos bons, que também há, impedindo--me de me orgulhar e embriagar. Viver a vida crucificado aos pés da cruz, como um condenado junto a Cristo, muda tudo."
"Deves passar aqui bocados bem maus", disse eu compreensivo.
"Nem queiras saber. Mas, em geral, até acho a minha cruz bastante leve. Comparada com a vida de outros, a minha é doce e calma. Penso que isso se deve a eu ser tão fraco e débil. Jesus dá as provações conforme as capacidades de cada um. Aqueles que têm grandes sofrimentos mostram por isso serem pessoas fortes e capazes, com resistência. Aos franzinos como eu, o Senhor dá uma vida mais serena, com mais sucessos do que fiascos, porque não aguentaríamos a outra. Mas às vezes..."
"Ver a Administração como o Calvário é original."
"Enganas-te. Há muita gente a viver assim. E eu não comecei a pensar assim só agora. A primeira vez que percebi isto era ainda estagiário. Agora melhorei isso, mas no meu tempo os estagiários, acabados de chegar, eram forçados aos trabalhos mais aborrecidos e degradantes da empresa. Foi então que tomei o meu caminho como uma Via-Sacra, aceitando cada obstáculo, insulto e percalço como os de Jesus. Qualquer pessoa, em qualquer vida que tenha, pode sempre vivê-la aos pés da cruz. Eu, como sou gestor, sinto-a na empresa, mas muitos outros a sentem nas actividades variadas em que vivem. Um amigo meu... Tu deves conhecer, o António Pinto Leite, escreveu há uns anos um livro muito bom chamado O Amor como Critério de Gestão. Vale a pena ler. Eu não sei escrever livros, mas se escrevesse um chamar-se-ia: A Cruz como Instrumento de Gestão. Um dia até sou capaz de sugerir ao António que ele o escreva. Mas a cruz, além da gestão, é instrumento de tanta coisa mais..."
"Estava aqui a pensar que isto tem graça, precisamente porque toda a gente te acusa, e a ti e aos teus colegas, de serem capitalistas gananciosos e exploradores, gestores impiedosos e desumanos..."
"Eu sei. Acham que sou um demónio. Ou, pior, chefe de demónios. Mas isso alegra-me, porque foi também assim que trataram o Senhor Jesus: "É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios" (Mt 9, 34). Hoje em dia, os gestores e financeiros são mais desprezados e insultados, até pelos cristãos, do que as prostitutas e os publicanos do tempo de Jesus. Mas era com esses que Cristo gostava de estar. Rezo pelos fariseus que me acusam sem me conhecerem, e não os acuso, porque o Senhor está com os acusados e condena os acusadores. Cada vez que leio as notícias ou ouço conversas sobre mim ou a empresa sinto-me ainda mais identificado com o Senhor."
Nesse momento tocou o telefone. Fiz menção de sair mas ele indicou--me uma cadeira e atendeu. Não percebi quem era, mas tratava-se evidentemente de uma negociação que correra mal e o interlocutor culpava o Vasco disso. Inicialmente ele tentava justificar-se, mas ia ficando calado. Quando o telefonema acabou ele esteve alguns minutos silencioso, com os olhos em baixo. Depois olhou-me, sorriu e disse: "Sétima estação - Jesus cai pela segunda vez."

In DN 2015.04.01

Francisco: teologia = “humanologia” (Paulo Rangel)

Francisco, provindo — segundo as suas exactas palavras — do fim do mundo, tem sido a única voz carismática e a única referência ética a nível global.

1. O frenesim vulgar e corriqueiro em que navega a política portuguesa, a par da seriedade e extrema gravidade da situação internacional e europeia — Estado Islâmico e Ucrânia, de um lado; crise, Grécia e populismos, do outro — talvez justifiquem uma paradoxal paragem para meditação. Para meditação sobre o essencial.
Perfazem-se agora, a 13 de Março, dois anos sobre a eleição do Papa Francisco. Sem dúvida, um dos acontecimentos globais mais marcantes destes tempos recentes. Francisco, provindo — segundo as suas exactas palavras — do fim do mundo, tem sido a única voz carismática e a única referência ética a nível global. Num mundo prenhe de lideranças frágeis e hesitantes, voltadas para a gestão egoísta, mesquinha e pequena das agendas diárias, sem visão e sem ambição, Francisco constitui a única e a grande reserva moral global. É a voz que prega no deserto.
2. Francisco não seria possível sem Bento XVI e a inspiração renovadora da sua renúncia. Muitos continuam sem perceber a transcendência do gesto de Bento XVI. Alguns tomaram esta renúncia apenas pelo seu valor facial: a velhice, o cansaço e a consciência lúcida da virtual incapacidade de exercício do pontificado. E outros houveram-na tão-só por uma generosa e sábia precaução política, pondo os holofotes globais no processo de eleição do papa seguinte, evitando que a respectiva sucessão fosse engendrada nos bastidores da cúria vaticana. Mas em especial por ter vindo de quem veio — alguém com absoluta ciência da radicalidade e da singularidade histórica da decisão de resignação —, este gesto está carregado de sentido e de significado. A atitude de renúncia tem o sentido de uma "dessacralização", de uma "humanização", de uma "normalização" do papado. O que, de resto, está em linha com a própria actuação de Bento XVI, que, durante o seu pontificado, já havia deixado sinais de uma visão menos "sacral" da sua missão (publicando livros na qualidade de simples teólogo e não de papa — é o caso, pelo menos, de dois dos volumes de Jesus de Nazaré). A renúncia, só por si e enquanto tal, é prenunciadora e conformadora de uma renovação e de uma abertura a uma reconfiguração do exercício do múnus papal — que deixa de ser "vitalício" e potencialmente eterno. Nada que surpreenda para quem leu os seus livros ou, por exemplo, a sua longa entrevista Luz do Mundo. A resignação de Bento XVI é filha do mesmo sentido profético que teve a convocação do Concílio por João XXIII. Francisco e o seu magistério não são compreensíveis nem seriam os mesmos sem este gesto fundacional e seminal.
3. A admiração, o respeito e até o afecto que suscita o Papa Francisco advêm, antes do mais, da sua exemplaridade. Em Francisco, não há doutrinas, não há correntes teológicas, não há bulas nem decretos. Em Francisco, há gestos, há atitudes, há palavras. Francisco não actua como um filósofo, nem como um doutrinador. Arrojando um pouco, Francisco não chega a ser um pregador, nem talvez — arriscando mais ainda — um pastor. Francisco é um homem que faz, é um homem que fala, é um homem que acolhe e abraça. Resolve não habitar os apartamentos pontifícios, lava os pés às mulheres muçulmanas, baptiza filhos de mães solteiras e de unidos de facto, visita Lampedusa, telefona a doentes pelo mundo inteiro, não se sente capaz de julgar os homossexuais, promove a consulta dos cristãos leigos para o sínodo sobre a família, visita prisões, mostra preocupação com a situação dos recasados, abre balneários para os sem-abrigo na Praça de S.Pedro, alerta ao vir de Manila para os desafios de uma paternidade e maternidade responsáveis, dirige as suas primeiras palavras aos crentes da sua diocese (Roma), recebe em audiência transexuais, insiste na condenação do capitalismo desenfreado, mostra uma verdadeira obsessão pelos mais pobres e excluídos, abraça e beija crianças, deficientes e doentes no espaço público, verbera sem contemplações os casos de pedofilia no clero, aproxima-se de judeus e muçulmanos e demais religiões, visita países improváveis e aparentemente menos prioritários (Albânia, Sri Lanka, Coreia do Sul), serve de mediador entre Cuba e os EUA e prepara-se para tentar apaziguar a Ucrânia.
4. Perante o entusiasmo e a esperança suscitada por este papa, muitos são aqueles que esperam grandes mudanças doutrinais, relevantes câmbios teológicos e enormes reformas organizacionais da Igreja e da Cúria. Não me atrevo a dizer que elas não possam acontecer e atrevo-me até a alvitrar que elas seriam altamente desejáveis. Mas quem olha para estes dois anos de missão deste "jesuíta-franciscano" por esse exclusivo prisma, julgo que perde e falha o essencial. O que verdadeiramente distingue Bergoglio é a vontade de imitar Jesus e de imitar Jesus até no estilo.
Jesus Cristo — qualquer que seja a nossa atitude e posição em termos de fé —alterou, até à medula e até à raiz, o fenómeno religioso e o modo como era vivido. Mas não fez nenhuma reforma da organização da religião judaica, não escreveu nenhum tratado teológico, não levou a cabo nenhuma revolução política. Limitou-se a dar o exemplo, a acolher o próximo, a entregar-se por inteiro e sem reservas ao seu desígnio. Optou pelos marginalizados, que tanto podiam ser os pobres como os estrangeiros. Lidou sem tabus com as mulheres, falou com os romanos, tocou nos leprosos, pernoitou em casa dos cobradores de impostos, rodeou-se de pescadores iletrados. E falou sempre de modo simples e acessível, lançando mão de parábolas e de comparações, por vezes dificilmente decifráveis, sem temer o desconcerto e até o escândalo.
Francisco, mais do que toda e qualquer grande reforma, tem sido, tem sabido ser um profeta do exemplo. Interpela-nos pelo exemplo; toca-nos pelo sentido profético. À Igreja portuguesa falta o sentido profético e a nós mingua-nos o exemplo.

In Público 10/03/2015