Pobreza? Tenham decência, nem sabem do que estão a falar (Gabriel Mithá Ribeiro)

Quem teve de viver na miséria, na diferença racial, como eu vivi, ou que se viu forçado a recomeçar do nada sabe o cuidado, o recato, a ponderação exigíveis quando se mexe em dignidades esfrangalhadas

A retórica política transformou a pobreza em artilharia pesada das fraturas ideológicas entre a esquerda e a direita ultrapassando os limites da decência para legitimar a superioridade moral de um dos lados da barricada.
Descendo de famílias pobres e de secular tradição emigrante. Do lado paterno, o católico, a ascendência resulta da miscigenação entre árabes sírios e autóctones moçambicanos. Do lado materno, o islâmico, a ascendência vem de indianos gujarate (de provável ancestralidade paquistanesa) e mestiços de cruzamentos entre originários do Índico e autóctones moçambicanos. Depois de viverem noutras cidades, os meus pais fixaram-se no Xipamanine, subúrbio da antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, cidade onde nasci. Tive a sorte de crescer na geração que saía da pobreza. Já vivia numa vivenda modesta nos arredores da cidade. Eram tempos em que a família tinha carro, bicicletas racionadas, idas ao cinema, à praia, férias distantes em casa de familiares. Pouco mais. Éramos também dos que não viam os negros no quintal ou a servir porque são família chegada.
O meu pai contava-se entre os simpatizantes da Frelimo, mas, como a família, poucos anos depois da independência rumou a Portugal. Para ele, não eram abstratas as probabilidades de ser vítima da guerra civil (1976-1992). Ia-se angustiando com o cheiro a pólvora, a sangue e a carne humana esturricada espalhados em vagões esburacados a tiro pelos então "bandidos armados", hoje Renamo. Na época, era obrigado a viajar em comboios onde pagava salários aos trabalhadores do Caminhos de Ferro de Moçambique num percurso que se estendia por cerca de seiscentos quilómetros de mato.
Reproduzindo o fado de antepassados, em inícios dos anos oitenta cheguei a Portugal com a roupa do corpo e a mala de viagem. Entrei num ciclo de pobreza com um fundo de hostilidade em relação aos 'brancos tugas' que a vida foi corrigindo, mas que nunca me fez desvalorizar a justiça e dignidade da independência do meu país natal. Depois de ter sido acolhido na Casa dos Rapazes, em Lisboa, acabei por ir viver com a família numa barraca no Vale do Jamor, num meio muito marcado pela africanidade mestiça e negra.
No quotidiano familiar desde o início ficou subentendido que a sociedade portuguesa abria, sem reservas, as portas das escolas e proporcionava possibilidades de trabalhar onde calhasse. Talvez porque os meus pais tivessem conhecido um outro ciclo de busca de uma vida melhor, vivíamos mais para mudar o destino do que para carpir misérias. Era a bússola cultural de cabeças do antigamente.
A partir dos quinze anos passei a reservar as pausas escolares ('pequenas' e 'grandes') para trabalhar no que aparecesse. A passagem pelo 'lumpemproletariado' imigrante africano acabou por se estender por cerca de uma década de onde saí diretamente para professor do ensino básico e secundário. Para além das obras, esses dias incluíram fábricas, hotelaria, estaleiros navais e, como não podia deixar de ser, a Siderurgia Nacional. Nada que atrapalhasse os estudos e uma vida de rua de bairro suburbano.
Entretanto, em poucos anos os dias da barraca haviam terminado. Em condições exigentes, foi possível ir amortizando um empréstimo bancário que permitiu a compra de um apartamento pequeno para o agregado familiar num meio mais aportuguesado. Lá nos encafuámos. Pai, mãe, cinco filhos, genro, sobrinho, avó. Três décadas depois e mesmo com vidas perdidas pelo caminho e outros obstáculos, os nossos dias nada têm de catastrófico.
Fui prosseguindo os estudos até que me vi com um certificado de doutoramento. Como prémio, recebo 1.495 euros de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pago mensalmente cerca de 500 euros pelo colégio do meu único filho (nisto vivo acima das minhas possibilidades), pago também mensalmente 243 euros à Caixa Geral de Aposentações e um Plano de Poupança Reforma de 150 euros. Mais os gastos do dia-a-dia. Vivo, portanto, numa invejável abundância financeira. Em 2013 tive ainda de suportar a viagem de trabalho a Moçambique, como havia feito no tempo das pesquisas para o mestrado. Se a vida não me der muito mais, dará certamente à minha descendência. Sinto-me moralmente obrigado a agradecer aquilo que Portugal permitiu que fosse fazendo por mim mesmo.
Porém, para que possa vislumbrar réstias de decência nos que se arvoram em donos da legitimidade do discurso sobre a pobreza ou sobre as minorias raciais, era útil que as elites políticas, muito em particular as de esquerda (socialistas, comunistas, bloquistas e demais), fossem relatando as suas experiências de vida. Sobra a sensação de posturas ignóbeis nos que enchem a boca de pobreza para abandalhá-la no imediatismo político que anima comícios, campanhas, convívios partidários e demais espetáculos e porque muitos o fazem a coberto de percursos pessoais e estilos de vida afortunados.
Quem teve de viver na miséria, na diferença racial ou que se vê forçado a recomeçar do nada sabe o cuidado, o recato, a ponderação exigíveis quando se mexe em dignidades esfrangalhadas. Tirando raros familiares e amigos íntimos, nunca levámos ninguém de fora a visitar-nos na barraca. Por mais de meia vida omiti o assunto de mim mesmo e de amigos e colegas de escola ou de trabalho. Os há muito íntimos, a minha mulher e o meu filho, souberam quando falei pela primeira vez publicamente do assunto em 2013. A miséria só não dói na boca dos outros. Por isso escapamos dela em silêncio. Também por isso, e se as pessoas é que contam, a pobreza jamais deveria ser politicamente instrumentalizada, por vezes a roçar o boçal.
Se me sinto afortunado foi porque cheguei a Portugal numa altura em que ninguém me estendeu a muleta do coitadinho, ninguém me viciou na ideologia dos subsídios. De então para cá vi-a crescer, institucionalizar-se e radicalizar-se sem que o mal social de fundo fosse debelado.
Nos tempos em que vivia no Vale do Jamor, nos anos oitenta, tinha um vizinho português branco que trabalhava, vendia ovos caseiros, tinha uma carrinha e condições de vida bem superiores às da minha família. O sujeito e respetiva família já lá viviam quando chegámos. Por lá continuaram quando, poucos anos depois, abandonámos a barraca (que entretanto alargámos, melhorámos e onde sofremos enxurradas dos que ficam com a parte dos terrenos que sobram) para regressarmos, agora na Europa, a uma habitação condigna. Quem sabe se aquela família, como outras, saiu de lá bem mais tarde, a custo e subsidiada aquando da requalificação urbanística da zona.
No bairro suburbano para onde me mudei nesses anos oitenta, a Cruz de Pau, na inevitável Margem Sul do Tejo, por muitos anos não me faltaram amigos e vizinhos, em particular portugueses, com condições socioeconómicas também mais favoráveis do que as da minha família. Porém, muitos deles não prosseguiam os estudos para além dos elementares. Também as obras e demais trabalhos incómodos atraíam preferencialmente os 'pretos' e um ou outro indígena 'tapado'. Com o tempo e a idade, alguns tornaram-se dos que mais se queixam das dificuldades da vida, da falta de apoios, da falta de oportunidades. O facto é que a sociedade portuguesa sempre colocou à disposição deles e minha salas de aula e possibilidades de trabalhar.
Quem hoje efetivamente necessita é vítima de um novo-riquismo ideológico irresponsável que alimentou e alimenta a ilusão social de que o essencial da ultrapassagem da pobreza e dos obstáculos à afirmação social dos indivíduos, mas também a fabricação de fortunas pessoais, passa por fazer crescer o estado social até ao limite da implosão. Sendo o estado social decisivo, não se podem confundir funções delimitadas e apoios circunscritos e excecionais com a criação de dependências parasitárias que distorcem por gerações a relação cultural dos indivíduos com o meio envolvente.
O que temos diante dos olhos é um fenómeno de natureza cultural e civilizacional fundado em atitudes e comportamentos quotidianos face aos estudos – apenas sociologias e psicologias que alinham no coro da irresponsabilidade justificam a indisciplina nas salas de aula e a falta de estudo com os argumentos da pobreza e da exclusão social –, face ao trabalho, face a obrigações pessoais, familiares e cívicas que começam no que cada indivíduo faz por si mesmo com o muito ou o pouco que possui.
Fez ainda parte do meu percurso uma longa experiência de professor do básico e secundário em contextos com bolsas de pobreza. Junte-se uma também longa formação académica vocacionada para a análise de fenómenos sociais, mas que não serve de muito sem evidências empíricas na primeira pessoa. Acrescento o que vou conhecendo da realidade moçambicana de hoje.
Tudo ponderado, que valor se pode atribuir a discursos sobre a pobreza ou minorias raciais eivados de uma pretensa superioridade moral de ultrapolitizados como D. Januário Torgal Ferreira, Bagão Félix, Francisco Louçã, António Costa, Ferro Rodrigues, Jerónimo de Sousa, Isabel Moreira, Jacinto Lucas Pires, João Semedo, Jorge Sampaio, Carvalho da Silva, Pacheco Pereira, Catarina Martins, Rui Rio, Frei Bento Domingues, Sampaio da Nóvoa, Mário Soares, Daniel Oliveira, Mário Nogueira, Joana Amaral Dias, Bruto da Costa, Nicolau Santos, Sérgio Godinho, Rui Tavares, Pedro Abrunhosa, Heloísa Apolónia, Silva Peneda, etc., etc., etc.? A lista seria interminável de gente que, como qualquer farsante intelectual de meias-verdades, há décadas que se agita para impedir que o senso comum perceba a complexidade do que está em jogo quando se fala de pobreza ou minorias raciais e que permitiria minimizar com muito maior eficácia fenómenos sociais cuja génese tem a ver com atitudes e comportamentos quotidianos dentro e fora de casa.
Fabricar para exibir e cantar 'sensibilidades sociais' à custa da miséria alheia para insinuar ou prometer revertê-la também à custa de rendimentos e sacrifícios alheios, lucrando em troca popularidades e votos, é o zénite do nojo provocado pelo politicamente correto. Vasco Pulido Valente está carregado de razão (Público, "Envelhecer", 08.02.2015).

In Observador 17/2/2015

Aborto: Um Mal Banalizado (José Maria Duque)

Cumprem-se hoje 8 anos sobre o referendo que liberalizou o aborto em Portugal. Para assinalar a data, o Observador publicou um artigo com o título <<A pergunta continua a mesma: "Estou grávida. Quero interromper. Como é que faço isso?">>

A peça é toda ela uma obra de publicidade à Associação de Planeamento Familiar, uma instituição declaradamente pró-aborto. No artigo são produzidas várias afirmações sobre como o número de abortos não são dramáticos e de como as mulheres ficam aliviadas depois de abortar, sem que haja espaço para qualquer contraditório ou seja fornecido algo mais do que a opinião da APF e do seu presidente. O único dado objectivo fornecido no texto é o número de abortos realizados em Portugal. Mesmo este dado só é dado para sustentar a afirmação de que o aborto no nosso país está a diminuir.

Antes de mais não posso deixar de falar da falta de qualidade jornalística do artigo em questão. Nada que me espante, porque este é o nível a que o Observador nos tem vindo a habituar, provando que a capacidade dos seus jornalistas é inversamente proporcional à dos colunistas.

Há dois claros exemplos disto. O primeiro é o tratamento dado ao número de abortos. De facto, nos últimos dois anos o número total de abortos tem vindo a diminuir. Depois de um aumento constante entre 2008 e 2011, em 2012 e 2013 o número diminui. Contudo este facto, isolado, não quer dizer nada.

O número de mulheres em idade fértil tem vindo a diminuir (envelhecimento da população). Por isso, para se saber se o aborto realmente diminuiu, é preciso saber se, no universo de mulheres grávidas, a percentagem daquelas que escolheu abortar é ou não menor. Isso é possível com três dados: o número de abortos, o número de abortos a pedido da mulher e o número de nados-vivos.

E o que de facto se constata, como refere José Ribeiro e Castro no comentário que faz a este artigo na página do Observador, é que a percentagem de mulheres grávidas que aborta tem vindo sempre a aumentar desde 2008. Ou seja o que diminuiu em Portugal foram as gravidezes. O aborto continua a aumentar.

O segundo exemplo da falta de seriedade do trabalho do Observador é uma perigosa afirmação feita pelo presidente da APF no fim do artigo: «Mas, "no estrangeiro, muitos estudos falam que depois da culpa da interrupção [de gravidez] surge uma sensação de alívio. Faz sentido"». Esta afirmação é perigosa porque parece ignorar os efeitos traumáticos que o aborto tem na mulher, que levam em muitos casos a depressões profundas. Este facto é confirmado não só por variadíssimos estudos como por inúmeras associações que trabalham no terreno a apoiar mulheres que já abortaram. Reproduzir esta frase sem assinalar que é controversa ou sem qualquer contraditório demonstra o desconhecimento do jornalista sobre o tema, assim como a ausência de qualquer investigação. De facto, mais do que uma notícia, o jornalista escreveu um anúncio à APF e à sua apologia do aborto.

Mas a incompetência e parcialidade do jornalista do Observador não é para mim o mais grave desta notícia. É triste e demonstra o estado do nosso jornalismo, mas não é o mais grave.

O mais grave é a forma banal como se fala do aborto. Como se fosse uma coisa boa. Como se o problema do aborto fosse criado pelo "estigma" que a sociedade lhe atribui. Como se o aborto fosse algo normal. Isto é o mais grave.

Porque se transformou o mal em algo de banal. Já não é preciso um monstro para o fazer: é fornecido pelo Serviço Nacional de Saúde de forma gratuita. E é de tal forma banal que o número total de abortos praticado desde 2007 (122.479) é apresentado como se fosse uma coisa boa. Afinal não foram assim tantos! De facto os pró-vida são uns alarmistas! Foram só cento e vinte e duas mil quatrocentas e setenta e nove crianças que foram eliminadas, gratuitamente e sem nenhuma razão, desde 2007.

É esta mentalidade que é preciso combater, é esta cultura. Porque o drama maior não é que haja uma lei que permite o aborto, mas que 21% das mulheres que engravidam em Portugal abortem.

Essa luta faz-se de muitas maneiras. Uma delas é criando leis que promovam uma cultura a favor da vida por nascer e eliminem as causas que levam ao aborto. É esse o grande objectivo da Iniciativa Legistativa: Pelo Direito a Nascer que recolheu em menos de quatro meses mais de quarenta mil assinaturas e que se prepara para dar entrada na Assembleia da República.

Os deputados que vão ser chamados a votar esta iniciativa tem agora dois caminhos: ajudar a criar uma mentalidade que defenda a vida ou então continuar a deixar que em Portugal o mal se mantenha de tal maneira banal que permaneça um direito.

In "Nós os Poucos", 2015.02.11

Cito a este propósito o comentário de José Ribeiro e Castro ao artigo citado, que mostra bem como o artigo não diz a verdade:

"Salvo o devido respeito, as contas não podem ser apresentadas assim, nem estas conclusões tiradas desta forma.
As estatísticas do aborto têm de ser comparadas com o número de nascimentos no mesmo ano, pois os índices de fecundidade também indicam uma quebra contínua do número de gravidezes.
Para vermos o número de nados-vivos, podemos recorrer à magnífica base de dados da PORDATA:
http://www.pordata.pt/Portugal/Nados+vivos+de+maes+residentes+em+Portugal+total+e+fora+do+casamento-14

Número de nados-vivos em Portugal
2008 – 104.594
2009 – 99.491
2010 – 101.381
2011 – 96.856
2012 – 89.841
2013 – 82.787

Assim, estive a fazer umas contas rápidas sobre os números com anos completos, de 2008 a 2013, e chego exactamente à conclusão inversa da notícia acima do OBSERVADOR: considerando o número de nascimentos ocorrido em cada ano, a taxa percentual de abortos, em Portugal, tem subido de ano para ano – ligeiramente, mas tem subido.

Assim, quanto ao número total de abortos, a evolução é a seguinte:
2008 – 17,8% dos nados-vivos
2009 – 19,9% dos nados-vivos
2010 – 19,9% dos nados-vivos
2011 – 21,1% dos nados-vivos
2012 – 21,3% dos nados-vivos
2013 – 22,5% dos nados-vivos

E, quanto ao número de abortos por opção da mulher, a evolução foi:
2008 – 17,2% dos nados-vivos
2009 – 19,3% dos nados-vivos
2010 – 19,3% dos nados-vivos
2011 – 20,6% dos nados-vivos
2012 – 20,7% dos nados-vivos
2013 – 21,0% dos nados-vivos"

Blasfémia (P. Gonçalo Portocarrero de Almada)

Impor, pela força, uma fé religiosa, ou negar a vida ou a liberdade a quem a não tem é, também, blasfemar. É crucificar de novo quem, tido por blasfemo, deu a vida pela liberdade de todos os homens.

A blasfémia está na moda mas, infelizmente, pelos piores motivos. Há quem defenda, em nome da liberdade de expressão, o direito à blasfémia e há quem entenda, pelo contrário, que são criminosos não só os que matam inocentes, mas também os que ofendem o santo nome de Deus. Mas, seria razoável criminalizar a blasfémia? Alguns crentes, nomeadamente muçulmanos, acham que sim. E os cristãos?
No Catecismo da Igreja Católica (CIC) diz-se que a blasfémia "consiste em proferir contra Deus – interior ou exteriormente – palavras de ódio, de censura, de desafio; dizer mal de Deus, (…) abusar do nome d'Ele". E que "a proibição da blasfémia estende-se às palavras contra a Igreja de Cristo, contra os santos, contra as coisas sagradas" (CIC, nº 2148).
A Igreja católica afirma que Jesus, sendo Deus, deve ser adorado. Mas, só pela fé se pode afirmar a natureza divina de Cristo e, como é óbvio, não se pode ser culpabilizado por não ter recebido essa graça. Com efeito, a fé é um dom divino gratuito e, por isso, ninguém pode ser constrangido a crer, ou a venerar alguém em quem não acredita. Nenhuma pessoa deve ser forçada, pelo poder político (CIC, nº 2108), a agir contra a própria consciência em matéria religiosa (CIC, nº 2106).
Contudo, quem não crê não pode, por esse motivo, ofender os crentes ou as suas crenças e, se o fizer, deve ser judicialmente responsabilizado, não porque a sua atitude constitui uma blasfémia, mas porque incorre num delito de injúrias ou de difamação. Os fiéis não podem ser discriminados por terem fé, como também os agnósticos e ateus o não podem ser por não crerem.
Aquilo que é blasfémia para alguns crentes, pode ser de fé para quem tem outra religião. Com efeito, o que os cristãos professam – que Jesus é Deus – é uma blasfémia para judeus e muçulmanos. Mas dizer que Jesus não é Deus, nem um profeta, como afirmam os judeus, é uma blasfémia para cristãos e muçulmanos, respectivamente. Que Deus é Alá e Maomé o seu profeta, como diz o islão, é, por sua vez, inaceitável para judeus e cristãos. Se o que para uns é de fé, para outros é uma blasfémia, só num estado confessional é possível a criminalização da blasfémia. Assim eram a Judeia, há dois mil anos, e os reinos da cristandade medieval. E assim é, ainda hoje, nos países em que vigora a lei islâmica. Criminalizar a blasfémia, em nome de uma religião, só é possível criminalizando todas as outras crenças e abolindo a liberdade religiosa.
"É também blasfematório recorrer ao nome de Deus para justificar práticas criminosas, reduzir povos à escravidão, torturar ou condenar à morte" (CIC, nº 2148). Ou seja, quem pretende justificar um crime, invocando o nome de Deus, blasfema. Tê-lo-ão feito os terroristas que, em nome de Alá, assassinaram pessoas inocentes, mas também judeus e cristãos o fizeram noutros tempos, embora se espere e deseje que tal nunca mais volte a acontecer.
Todas as crenças e todos os crentes e incrédulos merecem respeito, excepto se usarem o nome de Deus para legitimar um delito. Os assassinos dos atentados em França não foram menos culpados por terem agido por motivações religiosas, nem algumas das suas vítimas foram menos inocentes por causa da sua manifesta irreligiosidade. Quando a blasfémia se expressa em atentados contra a vida, ou contra a liberdade religiosa, de pensamento ou de expressão dos cidadãos, deve ser susceptível de uma sanção penal. Não porque é uma blasfémia, mas porque é um crime.
Qualquer pessoa tem o direito de crer, ou não crer, no que quiser, mas ninguém tem o direito de atentar contra a vida ou a liberdade de seres humanos inocentes, muito menos em nome de Deus.
Como também recorda o Catecismo, Jesus foi injustamente condenado à morte… por blasfémia! (CIC, nº 574). É confrangedor e paradoxal que, ao longo da história bimilenar da Igreja, alguns cristãos tenham matado outras pessoas, em nome de Cristo, pelo mesmo crime que Ele, há dois mil anos, foi iniquamente morto!
Impor, pela força, uma fé religiosa, ou negar a vida ou a liberdade a quem a não professa é, também, blasfemar. É crucificar de novo quem, tido por blasfemo, deu a sua vida pela liberdade das consciências de todos os homens, sem excepção.

In Observador, 2015.01.31

Não acreditem nos jihadistas (Rui Ramos)

Os jihadistas não representam o Islão, nem as populações muçulmanas na Europa e também não são invencíveis, e portanto não é preciso mudar o mundo para os derrotar.

Parece haver muita gente convencida de que só mudando o mundo será possível derrotar o jihadismo. Se fosse assim, é preciso reconhecer desde já que os jihadistas estão destinados a vencer, porque é claro que ninguém vai mudar o mundo, isto é, eliminar todas as dificuldades e preconceitos nos países de acolhimento da diáspora muçulmana, como desejam os nossos progressistas, ou então, numa variante conservadora do mesmo raciocínio, devolver às sociedades ocidentais as certezas heróicas de um oficial britânico na Índia em 1880. Não: para combater o jihadismo, há que confiar na polícia e nas forças armadas, apoiadas no interesse que as sociedades ocidentais, mas também as sociedades muçulmanas têm em se livrar da coacção sangrenta dos jihadistas.
Porque é que isto não é claro? Porque, muito curiosamente, naquilo que é fundamental, nós parecemos acreditar nos jihadistas. Eles dizem que nós somos decadentes, e nós, em geral, sentimo-nos decadentes. Eles dizem que representam o Islão, e demasiada gente aceita que, no fundo, representam o Islão. Eles dizem que querem morrer como mártires, e nós pensamos que eles podem morrer como mártires, o que faz com que haja sempre quem venha recomendar muito cuidado no uso da violência, ou até descrer da sua eficácia: se os prendermos ou matarmos, estamos apenas a fazer deles uma inspiração para outros. Ora, nada disto é verdade.
Há uma parte da nossa mitologia que ajuda os jihadistas. Nós aprendemos que o cristianismo se projectou através do exemplo dos seus mártires, e acreditamos que qualquer ideologia que tenha militantes prontos a morrer está destinada a expandir-se. Acontece que os mártires cristãos não se destacaram por matar gente indefesa, incluindo crianças em escolas, como os jihadistas, e que a morte dos seus militantes nem sempre é vantajosa para uma causa. Para nos ficarmos pelos movimentos de guerrilha: o fim de Guevara na Bolívia, em 1967, inspirou muitos posters estudantis, mas arruinou a sublevação que ele procurava atear. O grupo Baader Meinhof nunca recuperou da prisão e desaparecimento dos seus líderes. A repressão não é necessariamente ineficaz.
As forças de segurança não precisam de ser cruéis e desumanas, mas precisam de estar atentas a quem comprovadamente opte pelo jihadismo. No caso do Charlie Hebdo, os assassinos eram conhecidos pela polícia. Isso é reconfortante e preocupante ao mesmo tempo. É reconfortante, porque sugere que a malha de segurança ocidental é suficientemente fina para não deixar escapar qualquer organização ou propaganda; é preocupante, porque é óbvio que as autoridades nem sempre levam a sério o que detectam. A esse respeito, o "7 de Janeiro" em Paris faz lembrar o "11 de Setembro" em Nova Iorque, em relação ao qual o relatório do Congresso americano notou como os órgãos de segurança tinham acumulado indícios a que não deram importância.
Aqui, porém, talvez haja quem argumente: sim, mas ao contrário do Guevara boliviano, os jihadistas têm uma enorme organização e uma devoção religiosa milenar por detrás deles, e a simpatia potencial das comunidades que partilham essa devoção. Ora, também Guevara no seu tempo foi dotado pela imprensa ocidental de poderes e de apoios transbordantes. Não era assim no caso de Guevara, e não é assim no caso dos jihadistas.
Há dias, escrevi que não devemos subestimar o projecto jihadista; agora, vou argumentar que também não devemos sobrestimar a sua força. Não há qualquer contradicção: o projecto de terror faz sentido, mas isso não quer dizer que os jihadistas tenham os meios para o realizar, sobretudo se as autoridades ocidentais estiverem prontas para lhes fazer frente.
Os jihadistas não são a encarnação de correntes históricas imparáveis e avassaladoras, ao contrário do que o sensacionalismo jornalístico e o fascínio da barbárie fazem acreditar a demasiada gente. No Ocidente, só conseguem actuar esporadicamente e em grupos microscópicos; no Médio Oriente e na Ásia, os seus pés de barro ainda são mais evidentes: por exemplo, a al-Qaeda acabou isolada e foi totalmente derrotada no Iraque em 2007-2008.
Jihadistas como os de Paris não representam nem as comunidades donde saem, nem o Islão. A sua suposta devoção não foi herdada, mas adquirida na juventude, como qualquer moda suburbana. Aliás, os mais perplexos com as suas opções são geralmente os seus familiares. A "religião" dos jihadistas não é a dos seus antepassados, mas uma ideologia nova, em ruptura, não apenas com as sociedades ocidentais, mas também com as tradições islâmicas que dizem defender (para os jihadistas, aliás, quase todos os outros muçulmanos são "hereges"). Aprende-se mais sobre os jihadistas a ler os Possessos de Dostoievsky do que o Corão.
Mas, dir-me-ão agora, não tem o Islão textos violentos, ao contrário do cristianismo? Tem, mas interpretar a religião muçulmana a partir daí é adoptar o ponto de vista dos jihadistas e aceitar que uns quantos clérigos controversos e alguns jovens semi-letrados são a maior autoridade sobre culturas e civilizações milenares. O Islão tem muitos textos violentos, porque, tal como o antigo judaísmo, não se desenvolveu por meio da conversão de um grande poder militar estabelecido, como o cristianismo no império romano, mas através dos esforços de uma pequena comunidade de crentes em confronto armado com outras comunidades. Por isso, a sua tradição fala muito de guerras, como aliás o Velho Testamento. Por outro lado, o Islão, tal como cristianismo, existe em muitas formas locais, e nem sempre é fácil distinguir entre o que é muçulmano e o que, por exemplo, é sudanês, turco, árabe ou indonésio. Não é assim impossível que a diáspora muçulmana na Europa acabe um dia por desenvolver também um islamismo específico a partir das fontes tradicionais.
É crucial recusar a "narrativa" jihadista. Não, os jihadistas não representam o Islão, nem as populações muçulmanas na Europa e também não são invencíveis, e portanto não é preciso mudar o mundo para os derrotar, tal como não foi preciso mudar o mundo para derrotar o terrorismo marxista-leninista da década de 1970. Não, os bárbaros não estão a chegar e, como no poema de Cafavy, continuam a não ser a solução.

In Observador | 12/01/2015

Agradecimento pelos olhos do Diogo e da Tugce (Graça Franco)

amizade mini

 

Tugce e Diogo merecem que lhes agradeçamos terem tido "olhos" que não fingiram não ver e com isso nos ajudarem a manter abertos os nossos!
Obrigada

Recupero o seu nome numa busca da net: Diogo Andrade e Sousa. Faço-o porque, em Agosto, segui durante vários dias, através de alguns amigos da família, a angústia da sua morte. Bastou 'googlar' "jovem de sucesso esfaqueado no Cais do Sodré" para reencontrar a história do arquitecto estrangeirado de 28 anos que, durante umas curtas férias em Lisboa, encontrou estupidamente a morte. Em mãos deixou os projectos nas Caraíbas em que estava a colaborar e uma vida recheada de amigos e promessas.  A perda do jovem talento foi notícia pela violência da morte: esfaqueado na zona do Cais Sodré, porque ousara defender uma amiga do assédio de um gangue.

A sua morte foi lamentada, sobretudo, pela perda inútil do seu reconhecido talento, mas a verdade é que Diogo não estava sozinho naquela movimentada rua na noite de diversão, mas fora ele a cometer a "loucura" de tentar intervir. E é por esse gesto de coragem que é exemplo de luta contra a indiferença e o medo que nos vai tolhendo.

Esquecera injustamente o seu nome e recupero-o hoje para o associar à homenagem que mais de 170 mil alemães (unidos numa inédita petição) pretendem prestar a uma jovem compatriota de origem turca reclamando que o Estado, a título póstumo, lhe entregue uma medalha de mérito reconhecendo-a uma espécie de heroína nacional. Coisa que até a senhora Merkel, já fez saber, também verá com muito bons olhos.

Quem era? Tugce Albayrak não viveu o suficiente para se transformar numa jovem de sucesso. A 15 de Novembro foi brutalmente espancada, no parque de estacionamento de um McDonald's, na pequena localidade de Offenbach, nos arredores de Frankfurt. Foi a consequência de ter, alguns minutos antes, contribuído para salvar duas jovens do assédio de que estavam a ser vítimas na casa de banho do restaurante.

Tugce não foi a única a testemunhar o crime que estava a ser cometido no interior, mas só ela teve a coragem de não fingir que não via o que estava a acontecer. Essa ousadia custou-lhe a vida. Brutalmente espancada, entrou em coma naquela mesma noite( tal como acontecera a Diogo depois de esfaqueado), e acabou por morrer mais de uma semana depois, no dia em que festejaria 23 anos.

Esta quarta-feira a mesquita de Wachtersbach foi pequena para acolher os mais de 1.500 presentes para as cerimónias fúnebres que um canal de TV alemão transmitiu em directo. O caixão coberto pelas bandeiras da Turquia e Alemanha seguiu depois para o discreto cemitério de Bad Soden-Salmunster, localidade de onde a jovem de origem turca era natural. Às cerimónias, que comoveram o país, assistiram o embaixador da Turquia e o governador do Estado de Hesse em reconhecimento pelo acto de coragem demonstrado.

Um dia antes do espancamento de Tugce já o jornal "El Mundo" dava conta dos resultados de um estudo sociológico levado a cabo pela organização sueca STHLM Panda . O estudo visava testar como reagiriam testemunhas acidentais a um caso de violência doméstica. A equipa de sociólogos colocou uma dupla de actores no interior de um elevador simulando uma discussão que começava numa troca de impropérios e acabava em violência física sobre uma jovem mulher. A cena repetiu-se por várias viagens, filmada por câmaras ocultas, e testemunhada pelos vários passageiros acidentais que não suspeitavam da simulação.

Os resultados da experiência foram desanimadores e mostram uma espécie de anomia social que talvez possa designar-se como a "síndroma de não querer ver".

Entre 53 pessoas que acabaram por testemunhar a cena apenas uma mulher ousou por fim à violência com uma ameaça: "Se voltas a bater-lhe chamo a polícia." Os restantes fingiram não ver.

À saída, confrontadas pelos sociólogos para explicarem a sua actuação, todas as testemunhas, todas sem excepção, se mostraram envergonhadas por não terem feito nada e aliviadas por ter sido apenas uma experiência. Dá que pensar. Juraram não repetir.

É por isso que Tugce e Diogo merecem que lhes agradeçamos terem tido "olhos" que não fingiram não ver e com isso nos ajudarem a manter abertos os nossos! Obrigada

In RR online 09-12-2014