Barbárie e civilização (João César das Neves)

A Rússia anexou a Crimeia, na primeira violação de fronteiras da Europa desde 1945, começando o que ameaça ser um terrível conflito. No Iraque e Síria, sempre tão turbulentos, surge agora o Estado Islâmico (IS), com terríveis massacres e proclamando a 29 de Junho um califado mundial. Que já tem concorrência, pois o sangrento Boko Haram da Nigéria declarou outro califado global a 24 de Agosto. Como podem coisas destas acontecer hoje?
A pergunta, muito comum, esconde enorme ingenuidade. Porque razão havia de hoje ser melhor que ontem ou antigamente? Que temos nós de especial que nos torna imunes ao vandalismo? Coisas destas sempre aconteceram e vão acontecer. Como sempre teremos patetas que se surpreendam com elas.
Exaltar a civilização e contrapô-la à barbárie é razoável, hoje como antigamente. Mas se uma das culturas mais avançadas e sofisticadas da história, como a Alemanha dos anos 1930, cai na selvajaria nazi, das mais abjectas de sempre, isso devia vacinar-nos contra a tolice de nos dizermos imunes à bestialidade.
Vladimir Putin é um político irresponsável e violento, coisa comum em todos os países do mundo. Putins há muitos. Mais assustador do que as suas infâmias é que elas lhe concedam enorme popularidade nacional. Há menos de um ano o apoio nas sondagens do presidente russo era miserável, atingindo níveis invejáveis precisamente após esta violação do direito internacional e da decência humana. Mas os russos não são monstros, selvagens ou lunáticos. São pessoas como nós, humanas como nós, vendo o outro lado do problema.
Não é preciso ser monstro, selvagem ou lunático para pactuar com ideais, propostas e acções inaceitáveis. Por exemplo, pacatas donas de casa portuguesas têm dito coisas incendiárias acerca da troika ou do Governo. Se a crise em Portugal continuar mais uns anos, não só os lusitanos apoiarão as loucuras de um qualquer Putin que apareça, mas vemos já vários candidatos ao lugar.
Nesta triste história a única coisa aberrante, embora compreensível, é que os países ocidentais estivessem prestes a desmantelar a NATO, considerada obsoleta. A virtude deste terrível acto de Putin foi mostrar a tolice, ainda a tempo de correcção.
O califado é ainda menos estranho do que a invasão da Crimeia. Basta olhar para o caos do Médio Oriente e Norte de África dois anos após a romântica Primavera Árabe para o compreender. A imprensa ocidental tem pintado o IS como uma força terrorista primitiva. De facto, as atrocidades são inqualificáveis, mas essa descrição mostra enormes deficiências. Se consideramos o fenómeno das dezenas de milhares de jovens europeus que têm acorrido à região para se alistarem nessas forças, entende-se como as coisas são muito mais complexas. Essas pessoas não são monstros, selvagens ou lunáticos. São exactamente como nós ou os nossos filhos. Usam o Facebook, dizem piadas, gostam de comida de plástico, e anseiam pela ordem e a paz interior que o islão lhes promete. Como nós gostamos de ter ordem e paz interior.
As pessoas que consideram esses acontecimentos surpreendentes esquecem as terríveis críticas que elas mesmas têm feito à sua própria sociedade noutras circunstâncias. Muitos dos que dizem que a Europa está perdida, que os nossos líderes são trogloditas e o sistema vai derrocar, logo a seguir afirmam não entenderem como podem os russos ou iraquianos odiarem tanto o Ocidente. Esses povos, afinal, limitam-se a levar a sério aquilo que nós mesmos dizemos sobre nós.
Os horrores da Ucrânia, Iraque e Síria, como Egipto, Líbia, Nigéria e tantos outros, deviam, não levar-nos a classificar russos ou árabes, mas a pensar em nós. Assim vemos como somos muito piores e muito melhores do que achamos. A Europa, tendo abandonado a religião, desmantelado a família, comercializado a cultura e corrompido as instituições, não se pode surpreender que os outros povos a desprezem e seduzam os seus jovens. Mas, apesar das crises, livre de ditadores e fanáticos, massacres e caos, a Europa permanece um dos melhores cantinhos do planeta.

In DN 2014.09.15

Jornal das Boas Notícias 29

As Boas Notícias de Setembro 2014

 

Aristocratas do socialismo (Maria João Marques)

Há umas semanas correu nos jornais e redes sociais um estudo que notava que as pessoas bonitas ganhavam mais do que as menos agradáveis à vista. Conclui-se agora que ser de esquerda tem o mesmo efeito
A semana passada foi uma grande semana para o país. Ficámos a saber que podemos ganhar dezenas de milhar de euros anualmente sem fazer absolutamente nada. Não tema o leitor: não venho aqui vender nenhum esquema fraudulento daqueles que nos propõem rendimentos estratosféricos trabalhando duas horas a partir de casa. Nem se trata de aconselhar a dar o golpe do baú, que nesses casos pode mesmo ser muito trabalhoso contentar o dono ou a dona do baú. Não, refiro-me ao emprego dos administradores não executivos dos bancos nacionais, que Godinho de Matos tão bem descreveu na entrevista que deu ao jornal i. Como administrador não executivo do BES, entrava mudo, saía calado, não fazia ideia do que se passava no banco, não fazia perguntas (até se podia fazer, mas nunca ninguém fez e já se sabe que não é de bom tom quebrar tradições). E, por essa hercúlea tarefa, foram-lhe pagos em 2013 42.000€.
E quais são as condições de recrutamento para tão relaxante e rentável profissão? Um doutoramento? Um pós-doutoramento? Experiência em cargos de topo em organizações internacionais? Não complique, caro leitor. Para ser selecionado para administrador não executivo de uma grande empresa portuguesa – daquelas, bem entendido, que aumentam a faturação quando empregam quem tenha o ouvido dos decisores políticos – basta: a) ser de esquerda; e b) estar ligado à resistência ao regime de antes de 74.
Poderia argumentar que isto é – tal como a atual Segurança Social – uma discriminação das gerações mais novas (por exemplo eu, que nasci em 1974, não posso apresentar no meu CV a entrada 'resistência anti-fascista'), mas prefiro centrar-me nas vantagens sociais e económicas que, pelos vistos, ser de esquerda dá. Há umas semanas andou a correr nos jornais e redes sociais um estudo que notava que as pessoas bonitas ganhavam mais do que as menos agradáveis à vista. Conclui-se agora que ser de esquerda tem o mesmo efeito.
Enquanto lia a entrevista de Godinho de Matos, lembrei-me de Deborah Mitford, a penúltima Duquesa do Devonshire. Há uns anos, dois ou três, li o seu livro de memórias. Na verdade li só partes, porque esperava encontrar textos deliciosos como os produzidos nas memórias das suas irmãs Jessica (a comunista) e Diana (a amiga de Hitler), mas o talento literário (que culminou, evidentemente, em Nancy) foi desigualmente distribuído na família. Em todo o caso li que a Duquesa foi convidada para (e aceitou) fazer parte da administração de uma grande empresa. Méritos profissionais da senhora? Era mulher (e começava a parecer bem não ter empresas fastidiosamente só masculinas) e era duquesa (donde: sabia estar e conhecia imensa gente of consequence). Se calhar – digo eu – não perceber nada do negócio que ajudava a administrar até era uma mais-valia, não fosse sentir-se à vontade para se fazer saliente e colocar entraves à gestão de quem sabia.
Curioso, não é, que a ideologia igualitarista do socialismo acabe a reproduzir para os seus aficionados os benefícios que costumam estar à disposição da aristocracia de sangue nos países onde esta ainda persiste? Não, em boa verdade não é curioso, é mesmo algo intrínseco ao socialismo e que os socialistas se esforçam por manter, que a vontade de cuidar de si e dos seus não está licenciada apenas para uso da direita.
Temos os exemplos das ditaduras do proletariado – perdão, democracias populares – onde se instala uma monarquia inconstitucional: na Coreia do Norte vamos na terceira geração de boa governação da família Kim, e em Cuba Raúl sucedeu ao irmão Fidel.
Estes pormenores classistas sempre me divertiram em ideologias que pregam a igualdade acima de tudo. Depois da desagregação do URSS, andei viciada nas reportagens da Revista do Expresso onde se contavam os apartamentos espaçosos e luxuosos dos dirigentes de topo do PCUS, mais as dachas de fim de semana. Na China maoísta, as classes de origem de qualquer chinês estavam registadas e determinavam, por exemplo, quem podia frequentar a universidade. A população vivia em generalizada pobreza, mas os altos quadros do PCC viviam em casas amplas, com empregados domésticos e carros modernos. Atualmente os filhos e netos dos tais altos quadros do tempo maoísta (incluindo a neta de Mao) são os felizes possuidores de gigantescas fortunas construídas com base nas influências políticas das famílias.
O socialismo não é o comunismo, dir-me-ão. Não é. Mas está sujeito à mesma tentação: vê o partido como O Bem e recompensa segundo a proximidade ao topo. A partir daí as dinastias aristocráticas proliferam, ao mesmo tempo de sangue e políticas. E quanto à igualdade, usam aquela boa máxima inventada por George Orwell no Animal Farm: 'Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros.'

In Observador 2014.09.10

Quem defende os cristãos? (Ronald S. Lauder)

O povo judeu compreende muito bem o que pode acontecer quando o mundo se mantém em silêncio. Esta campanha de morte tem de ser travada.

Porque é que o mundo se mantém em silêncio enquanto cristãos são vítimas de massacres no Médio Oriente e em África? Na Europa e nos Estados Unidos, assistimos a manifestações contra as mortes trágicas de palestinianos, utilizados como escudos humanos pelo Hamas, a organização terrorista que controla Gaza. As Nações Unidas conduziram inquéritos e focam a sua raiva em Israel por se defender contra essa mesma organização terrorista. No entanto, o massacre bárbaro de milhares e milhares de cristãos é visto com relativa indiferença.
O Médio Oriente e partes de África central estão a perder comunidades inteiras de cristãos que viveram em paz durante séculos. O grupo terrorista Boko Haram raptou e assassinou centenas de cristãos este ano – devastando a vila de Gwoza, maioritariamente cristã, em Agosto, no estado de Borno no nordeste da Nigéria. Meio milhão de cristãos árabes foram expulsos da Síria durante os mais de três anos de guerra civil. Os cristãos têm sido perseguidos e mortos em países desde o Líbano até ao Sudão.
Os historiadores podem olhar para este período e perguntar se as pessoas perderam o seu rumo. Até há pouco tempo poucos jornalistas tinham viajado até ao Iraque para testemunhar a onda de terror, semelhante ao nazismo, que se está a espalhar no país. As Nações Unidas quase não se pronunciam sobre o assunto. Os líderes mundiais parecem estar consumidos por outros assuntos neste estranho verão de 2014. Não há flotilhas em direção à Síria ou ao Iraque. E porque é que o massacre de cristãos não faz levantar as antenas das belas celebridades e das estrelas rock envelhecidas?
O Presidente Obama deve ser louvado por ter ordenado ataques aéreos para salvar dezenas de milhares de yazidis, seguidores de uma religião antiga e presos numa montanha no norte do Iraque, cercados por militantes muçulmanos sunni. No entanto, infelizmente, os ataques aéreos, por si só, não são suficientes para travar esta vaga grotesca de terrorismo.
O Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, ou ISIL) não é uma coligação solta de grupos jihadistas, mas sim um força militar real, que conseguiu assumir o controlo de maior parte do Iraque com um modelo de negócio bem-sucedido que rivaliza com o seu arauto da morte. Esta coligação utiliza dinheiro de bancos e de lojas de ouro que foram capturados, assim como recursos de petróleo e a velha extorsão, para financiar a sua máquina de morte, sendo assim, talvez, o grupo terrorista islâmico mais rico do mundo. No entanto, é na carnificina que o ISIS se destaca, rivalizando com as orgias de morte da Idade Média. De modo brutal, têm atacado xiitas, curdos e cristãos.
"Eles decapitaram crianças e puseram as suas cabeças em paus" disse à CNN Mark Arabo, um homem de negócios caldeu norte-americano, descrevendo uma situação num parque em Mosul. "Há mais crianças a serem decapitadas, mães a serem violadas e mortas e pais enforcados."
200.000 arameus fugiram da sua cidade-natal, perto de Nineveh, e já saíram de Mosul.
A indiferença geral em relação ao ISIS, com as suas execuções em massa de cristãos e com a sua preocupação mortífera com Israel não é apenas errada – é obscena.
Em Budapeste, num discurso proferido perante milhares de cristãos, em junho, fiz uma promessa solene de que não vou manter-me em silêncio face à crescente ameaça de antissemitismo na Europa e no Médio Oriente – e que também não vou ser indiferente ao sofrimento cristão. A História conta-nos o oposto: os judeus têm sido sempre a minoria perseguida. No entanto, Israel tem estado entre os primeiros países a prestar auxílio a cristãos no Sudão do Sul. Os cristãos podem exercer a prática da sua religião abertamente em Israel, o que não se verifica em grande parte do Médio Oriente.
Esta ligação entre judeus e cristãos faz todo o sentido. Partilhamos muito mais do que a maioria das religiões. Lemos a mesma Bíblia e partilhamos um núcleo moral e ético. Nos dias de hoje, infelizmente, também partilhamos um tipo de sofrimento: cristãos estão a morrer pelas suas crenças, porque estão indefesos e porque o mundo está indiferente ao seu sofrimento.
É necessário que o lado bom das pessoas se traduza em união para travar esta vaga revoltante de violência. Nós não somos impotentes. Escrevo isto como um cidadão da maior potência militar do planeta. Escrevo isto como um líder judeu que se preocupa com os seus irmãos e irmãs cristãos.
O povo judeu compreende muito bem o que pode acontecer quando o mundo se mantém em silêncio. Esta campanha de morte tem de ser travada.

Ronald S. Lauder é o presidente do World Jewish Congress. Texto publicado originalmente no New York Times.

In OBSERVADOR 2014.09.03

O lugar de Deus (João César das Neves)

É estranho ver aqui um artigo com este título, não é? Vários leitores, irritados ou enfastiados, passaram já à página seguinte; outros lêem, desconfiados ou agradavelmente surpreendidos; todos, porém, sentiram o insólito da situação. Não é normal ter, num diário de referência e grande circulação, um texto com este tema.
A estranheza é, ela mesmo, estranha. Nos tempos que correm não somos propriamente cândidos. Por isso, nas outras páginas deste periódico, precisamente por ser de referência e grande circulação, encontram-se, sem despertar assombro, os assuntos mais diversos e abstrusos. Violências cruéis e perversões várias, passando por inúmeros crimes, tolices e extravagâncias, até temas religiosos, de agressões extremistas a ensinamentos sábios, não suscitam perturbação. Nada incomoda tanto uma audiência sofisticada e esclarecida quanto este título. Todas as coisas são de esperar numa publicação destas; não uma inquirição séria sobre a pessoa de Deus.
No entanto, a divindade é o tema mais presente e comum da humanidade. Nas publicações de referência e nas manifestações públicas de qualquer outro período ou região, surge a natural e serena presença da Providência. Todas as culturas, épocas e civilizações conviveram com ela de formas variadas, mas sempre normais. O incómodo actual contrasta com a generalidade dos povos. A aberração é realmente nossa. Insólito não é o título, mas a sua raridade.
A origem da inesperada estranheza é óbvia. Somos herdeiros da primeira tentativa humana de erradicação sistemática do transcendente. Nos últimos 250 anos, em toda Europa, filósofos argumentaram e oradores ridicularizaram; autoridades proibiram, encerraram, prenderam, por vezes devastaram e executaram. No conjunto, representou o maior esforço colectivo da história da humanidade. E foi contra Deus.
Finalmente os promotores entenderam que não só o processo os transformara em monstros piores do que os que diziam perseguir, mas os resultados eram desanimadores. A religião, debaixo da terrível pressão, resistiu e prosperou. Então mudaram o método. O Todo-Poderoso deixou de ser atacado abertamente para ser ignorado. Passou de inimigo a desconhecido.
Hoje suscita-se um esforço colectivo de fingir que as questões fundamentais da existência -origem e finalidade da realidade, sentido da vida, destino pessoal- afinal não interessam. A cultura mediática embriaga-se em ilusão, magia, política, ciência, zombies e super-heróis para esquecer que somos apenas humanos em busca da felicidade. As crenças mais abstrusas podem ser apregoadas livremente, desde que realmente não sejam levadas a sério. Como não se entende uma fé verdadeira, existem oficialmente apenas duas alternativas admissíveis: indiferença ou fanatismo. Chega-se a ponto de rejeitar como boçalidade ou fundamentalismo qualquer genuína expressão de devoção. Um texto como este, por exemplo, deve manifestar desequilíbrio.
O desvio afectou até os fiéis piedosos. Como algum público se irrita com a religião alheia, vários devotos escondem a sua fé para não incomodar. Sem se preocuparem com o incómodo de Deus. Muitos, até zelosos, têm dificuldade em se relacionar com o sublime, preferindo uma religião pragmática e assistencialista. O Papa Francisco censurou precisamente isso na sua primeira homilia: "Se não confessarmos Jesus Cristo, tornar-nos-emos uma ONG sociocaritativa, mas não a Igreja, Esposa do Senhor" (Capela Sistina, 14 de Março de 2013).
Qual é então o lugar de Deus? Alguns recusam-Lhe cidadania, fazendo-O o único proscrito da sociedade tolerante. Outros situam-nO no alto dos Céus, cheio de majestade mas vago, longínquo e indiferente. Há ainda os que O colocam dentro do coração do homem, mas tão fundo que mal se sente. Não entendem que a questão do lugar de Deus realmente não faz sentido. Deus, sendo Deus, não tem lugar, pois o infinito não sofre localização; o absoluto não é contingente. O único lugar a determinar é o nosso. E, onde quer que esse seja, "o Reino de Deus está próximo" (Mc 1, 15).

In DN 2014.09.01