Morte e transfiguração (M. FÁTIMA BONIFÁCIO)

As vésperas das eleições europeias não se têm apresentado mais festivaleiras do que o costume. A direita celebra indicadores macroeconómicos agradáveis (e inegáveis); a esquerda desvaloriza, como lhe compete, a performance do actual Governo e promete alegremente libertar Portugal do colete-de-forças da dívida, aumentar o investimento público e ampliar o Estado social. O PCP, a cauda mais reaccionária da esquerda portuguesa, promete inclusive, através de um jovem apessoado que lançou como cabeça de lista a Bruxelas, envidar todos os esforços para que Portugal abandone o euro, acastelando-se no escudo, na protecção alfandegária e num plano quinquenal que supõe a nacionalização do chamado "grande capital". O Bloco de Esquerda, onde Francisco Louçã sabe fazer as contas e, convenhamos, tem uma noção mais actualizada do mundo em que vivemos, não inscreveu na sua bandeira a saída do euro. Mas nem por isso revela menor lunatismo do que a esquerda em geral. De que nos falam o PCP e o BE? De direitos sociais e mais direitos sociais, sem a mais leve indicação, sequer grosseiramente quantificada, de quem os pagaria. O simples papaguear de uma Catarina Martins, que duvido saiba ler um orçamento do Estado, é indicativo suficiente da irresponsabilidade – para não dizer infantilidade – que se apossou daquelas paragens políticas, a que um homem bom, o dr. João Semedo, procura em vão conferir alguma respeitabilidade.

A esquerda portuguesa – sim, não estou a falar de Manuel Valls ou de Matteo Renzi – continua pateticamente mergulhada num estado de denegação, recusando ver e reconhecer que o mundo em que nasceu, medrou e prosperou simplesmente morreu (ou está em vias de morrer), tal como acabou também sem apelo nem agravo o mundo pré-industrial dos luditas, que destruíam as máquinas que tornavam dispensável o seu trabalho. Não é preciso ter uma visão teleológica da História – que não tenho – para perceber que a globalização, enquanto estádio supremo do capitalismo (…), erigiu o mercado num critério civilizacional. Haverá prova mais eloquente disto do que o que se passa actualmente no mundo da criação artística e até intelectual e filosófica? Os media, a Internet, os facebooks, os twitters acabaram por mercantilizar tudo, tudo, e integraram-nos a todos nós numa categoria transversal que suplantou as tradicionais clivagens sociais expressas em termos de classe – a categoria de consumidores. As férias em Cancún são comercializadas do mesmo modo que criações do espírito como a American Pastoral de Philip Roth, por exemplo. A esquerda tradicional, que é a que desgraçadamente temos em Portugal, desconhece (ou finge desconhecer) o seu público, ou, para ser mais exacta, o seu mercado. Farejou, é claro, o apetite dos que sonham consumir, uma aspiração que eu não tenho a mais remota autoridade ou desejo para criticar; por isso lhes acena com mais direitos, isto é, com mais dinheiro. Infelizmente, a classe média-média já paga 70% de impostos, e se quiserem acabar com os verdadeiramente ricos ficarão só com pobres.

Esta esquerda, que promete abundância, está condenada na exacta medida em que o velho Ocidente, prisioneiro dos seus mitos igualitários, mas economicamente decadente, se revela absolutamente incapaz de satisfazer as aspirações apregoadas na bandeira socialista. Seria o menos se apenas Cancún estivesse em causa. O mais dramático é o futuro do Estado social, que todos os regimes políticos democráticos, sejam os governos de esquerda ou de direita, juram querer preservar. É falso. E se a esquerda amarrar o seu destino ao destino do Estado social tal como o conhecemos actualmente pode começar a encomendar o seu próprio funeral, pelo simples motivo de que a única maneira de conservar o Estado-providência consiste, a prazo, em privatizá-lo, salvo, desejavelmente, um núcleo duro da Saúde que alguém tenha coragem de definir. O futuro do Estado social reside na sua "morte e transfiguração". Genericamente, as decrépitas economias europeias tornaram-se incapazes de gerar excedentes que permitam sustentar, nos moldes actualmente vigentes, a escola pública, a Saúde pública, a Segurança Social e as diversas e dispendiosíssimas prestações sociais destinadas a garantir o que se convencionou chamar "coesão social".

In Público, 18/04/2014

Os milagres "imperfeitos" de Jesus (P. Gonçalo Portocarrero de Almada)

Bem sei que a Sagrada Escritura diz que Jesus «tudo fez bem» (Mc 7, 37) mas, paradoxalmente, muitos dos seus milagres parecem tão imperfeitos quanto as belíssimas capelas da Batalha, que o são precisamente porque nunca foram concluídas. Também vários milagres do Senhor parecem incompletos, porque realizados de forma aparentemente deficiente.
Senão, vejamos. Logo o primeiro, nas bodas de Caná, parece estranho, se se atentar a todos os pormenores. A pedido de Maria, Jesus acede a resolver milagrosamente a falta de vinho naquele banquete nupcial que, em boa verdade, corria sérios riscos de se tornar um autêntico «copo-de-água». Para o efeito, manda os serventes encherem seis talhas de pedra, tendo cada qual uma capacidade de uns cem litros, aproximadamente. Ou seja, obrigou os empregados a carregar uns seiscentos quilos de água, o que não é brincadeira. Ora um milagre «perfeito» podia e devia suprir essa operação prévia, pois Deus tem poder mais do que suficiente para fazer surgir, directamente do nada, o melhor vinho do mundo.
É verdade que o milagre das bodas de Caná foi o primeiro e, por isso, deve-se-lhe dar algum desconto. Mas, mesmo mais tarde, já sendo o Senhor mais experiente na arte, voltam a acontecer situações que parecem denotar alguma imperfeição no ofício. Por exemplo, aquando a segunda multiplicação dos pães e dos peixes, o Mestre excede-se na produção: com o que sobrou, encheram-se sete cestos bem cheios. Não teria sido mais lógico e económico que tivesse acertado na quantidade de alimentos a proporcionar àquela multidão de cerca de dez mil pessoas?! Por outro lado, Jesus serviu-se dos discípulos, qual improvisada empresa de «catering», para a distribuição daquele alimento milagroso e para a recolha das sobras, operação que, sendo tanta a gente a servir, deve ter sido muito demorada e cansativa. Porque não fez surgir, diante de cada comensal, a sua refeição, segundo a sua própria necessidade?! Não teria sido mais exemplar um milagre bem calibrado e sem necessidade de recorrer ao serviço dos apóstolos?!
Outro milagre estranho é o da cura do cego, em duas etapas. Depois da primeira intervenção de Jesus, o miraculado ficou a ver alguma coisa, mas tão desfocado que lhe parecia que os homens eram árvores que andam, o que é, obviamente, um insulto para os seres do reino vegetal. Foi precisa uma segunda actuação do Mestre para que o homem ficasse a ver bem. Pergunta-se: não teria sido mais lógico que o feito ocorresse de uma só vez?! Que dizer, ou pensar, de um médico que precisa de recorrer a uma segunda cirurgia, para corrigir o resultado da primeira?!
Mesmo depois da sua ressurreição, os milagres de Cristo parecem insuficientes, inexplicavelmente. A pesca milagrosa, que denuncia a presença do divino ressuscitado na margem do lago, volta a ser paradoxal: o artífice do facto extraordinário não poupa aos pescadores, depois de uma noite inteira de infrutífera faina, a penosa labuta de retirar do mar cento e cinquenta e três grandes peixes, tantos que a rede quase se rompia. Não lhes podia ter sido evitado este escusado sacrifício?! Não teria sido mais cómodo que a barca remasse para terra sem esse pesado lastro?! Não seria preferível que, logo de início, o peixe aparecesse na margem, já pronto para seguir para a lota?!
Como diria o Cardeal van Thuan, são precisamente estes «defeitos» de Jesus que o fazem mais amável. Se Ele só tivesse feito milagres «perfeitos», os fiéis mais não seriam do que meros espectadores passivos da sua acção. Com efeito, é a «imperfeição» dos seus milagres que convida à cooperação dos cristãos. Também o milagre em duas etapas é estimulante, na medida em que é um chamamento à esperança, na oração e na acção.
Graças a essas «imperfeições» divinas, todos os cristãos somos chamados a tomar parte activa na redenção do mundo, em união com Cristo e na sua Igreja, que é nossa também. Não falte, então, o nosso trabalho, nem a nossa fé!

In A voz da verdade, 2014.03.16

As crianças belgas são também nossas (RITA LOBO XAVIER e WALTER OSSWALD)

Esta lei é iníqua e merece a rejeição por parte de toda a pessoa de boa vontade.


O projecto de lei recentemente aprovado no Parlamento belga provocou generalizadas reacções de rejeição e crítica. Todavia, também encontrou alguém que o defendesse, como a deputada socialista que descansou os opositores, pois, como declarou, ninguém deve temer esta lei, já que não torna obrigatória a prática de eutanásia em crianças doentes ou deficientes. Só faltava isso e teríamos regressado ao programa nazi de supressão da "vida sem valia para ser vivida"!
É necessário corrigir muitas das afirmações erradas que têm sido feitas a este propósito, mesmo por parte dos proponentes da lei, cujos erros poderão vir a ter consequências trágicas.
Na realidade, não se trata de "eutanásia infantil" ou "alargada a crianças", pela simples razão de a eutanásia ser, por definição, a indução da morte a pedido daquele que vai ser morto. Ora, ao permitir que seja dada a morte a crianças sem a faculdade de "discernimento" para a pedir (que seriam, em princípio, as de idade inferior a 12 anos, incluindo os bebés prematuros), o projecto de lei aprovado estabelece que serão os pais (ou representantes legais) e a equipa médica quem tomará a decisão fatal. De facto, o Parlamento belga aprovou a legalização do infanticídio ou homicídio a pedido não do próprio sujeito, mas de terceiros.
Claro é também que o facto de a própria criança dotada de "faculdade de discernimento" – conceito cujo conteúdo será determinado de forma puramente subjectiva – poder solicitar a morte não pode ser valorizado: se nem a lei nem o senso comum reconhecem maturidade a pessoas de idade inferior a 16 (ou 14, nalguns países), como se poderá argumentar que, em questão tão fundamental, o jovem ser terá experiência, conhecimento e ponderação para pedir que o matem? Serão sempre os adultos que o rodeiam quem tomará a iniciativa, sugerindo-a, propondo-a ou pressionando nesse sentido. O texto que acompanha a proposta de lei, paradoxalmente, admite que a morte da criança é importante para apaziguar o sofrimento da família, isto é, que pode funcionar como terapia para terceiros. Ora, os pais não são donos, apenas curadores e procuradores dos seus filhos; reconhecer aos pais o poder de entregar à morte os seus filhos é regredir, pelo menos, até aos primórdios do direito romano.
A premissa de que se poderá evitar sofrimento insuportável e intratável da criança, por exemplo em estado terminal de doença oncológica, é fraudulenta, pois a arte médica tem processos disponíveis para tratar toda e qualquer situação dolorosa; eventuais erros médicos (por obstinação ou por insuficiência terapêutica) têm de ser prevenidos e condenados.
Do ponto de vista ético, é inaceitável praticar qualquer intervenção sem consentimento expresso, esclarecido e livre do sujeito, vulgarmente designado por "consentimento informado". Nas crianças, o consentimento é prestado pelos pais ou por outros representantes legais, mas não será considerado como válido se estiver em oposição ao superior interesse da criança. Poderá entender-se que pedir a morte para uma criança e matá-la serve o seu superior interesse? Note-se ainda que, no caso vertente, não se pode falar sequer de consentimento, o que implicaria uma proposta ou pedido prévios: os pais não consentem num tratamento ou numa intervenção nos filhos, apenas solicitam que se lhes dê a morte.
Estas são as razões por que  consideramos esta proposta de lei como:
 – eticamente reprovável, por não existir consentimento informado e se ofender um direito humano primacial, que é o direito à vida;
 – moralmente repugnante, por reconhecer aos pais um poder de disposição da vida dos filhos;
 – juridicamente aberrante, por prescindir de garantias e violar direitos dos mais frágeis.
Por isso, no caso de vir a entrar em vigor, esta lei será um atentado contra a humanidade e uma vergonha para o país que a aprovou. E não se diga que devemos respeitar a soberania de um país que não é o nosso e abstermo-nos de juízos de valor sobre textos legais estrangeiros: quando se trata de direitos fundamentais, não há fronteiras, nem santuários políticos. As crianças belgas são também nossas.
Esta lei é iníqua e merece a rejeição por parte de toda a pessoa de boa vontade.


Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
Professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

In Público,13/03/2014

Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2014

papa-francisco-1Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9)

Queridos irmãos e irmãs!

Por ocasião da Quaresma, ofereço-vos algumas reflexões com a esperança de que possam servir para o caminho pessoal e comunitário de conversão. Como motivo inspirador tomei a seguinte frase de São Paulo: «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). O Apóstolo escreve aos cristãos de Corinto encorajando-os a serem generosos na ajuda aos fiéis de Jerusalém que passam necessidade. A nós, cristãos de hoje, que nos dizem estas palavras de São Paulo? Que nos diz, hoje, a nós, o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico?

A graça de Cristo

Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus. Deus não Se revela através dos meios do poder e da riqueza do mundo, mas com os da fragilidade e da pobreza: «sendo rico, fez-Se pobre por vós». Cristo, o Filho eterno de Deus, igual ao Pai em poder e glória, fez-Se pobre; desceu ao nosso meio, aproximou-Se de cada um de nós; despojou-Se, «esvaziou-Se», para Se tornar em tudo semelhante a nós (cf. Fil 2, 7; Heb 4, 15). A encarnação de Deus é um grande mistério. Mas, a razão de tudo isso é o amor divino: um amor que é graça, generosidade, desejo de proximidade, não hesitando em doar-Se e sacrificar-Se pelas suas amadas criaturas. A caridade, o amor é partilhar, em tudo, a sorte do amado. O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Foi o que Deus fez connosco. Na realidade, Jesus «trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. Gaudium et spes, 22).

A finalidade de Jesus Se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas – como diz São Paulo – «para vos enriquecer com a sua pobreza». Não se trata dum jogo de palavras, duma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! Quando Jesus desce às águas do Jordão e pede a João Batista para O batizar, não o faz porque tem necessidade de penitência, de conversão; mas fá-lo para Se colocar no meio do povo necessitado de perdão, no meio de nós pecadores, e carregar sobre Si o peso dos nossos pecados. Este foi o caminho que Ele escolheu para nos consolar, salvar, libertar da nossa miséria. Faz impressão ouvir o Apóstolo dizer que fomos libertados, não por meio da riqueza de Cristo, mas por meio da sua pobreza. E todavia São Paulo conhece bem a «insondável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), «herdeiro de todas as coisas» (Heb 1, 2).

Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-Se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na berma da estrada (cf. Lc 10, 25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e verdadeira felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha. A pobreza de Cristo, que nos enriquece, é Ele fazer-Se carne, tomar sobre Si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus. A pobreza de Cristo é a maior riqueza: Jesus é rico de confiança ilimitada em Deus Pai, confiando-Se a Ele em todo o momento, procurando sempre e apenas a sua vontade e a sua glória. É rico como o é uma criança que se sente amada e ama os seus pais, não duvidando um momento sequer do seu amor e da sua ternura. A riqueza de Jesus é Ele ser o Filho: a sua relação única com o Pai é a prerrogativa soberana deste Messias pobre. Quando Jesus nos convida a tomar sobre nós o seu «jugo suave» (cf. Mt 11, 30), convida-nos a enriquecer-nos com esta sua «rica pobreza» e «pobre riqueza», a partilhar com Ele o seu Espírito filial e fraterno, a tornar-nos filhos no Filho, irmãos no Irmão Primogénito (cf. Rm 8, 29).

Foi dito que a única verdadeira tristeza é não ser santos (Léon Bloy); poder-se-ia dizer também que só há uma verdadeira miséria: é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo.

O nosso testemunho

Poderíamos pensar que este «caminho» da pobreza fora o de Jesus, mas não o nosso: nós, que viemos depois d'Ele, podemos salvar o mundo com meios humanos adequados. Isto não é verdade. Em cada época e lugar, Deus continua a salvar os homens e o mundo por meio da pobreza de Cristo, que Se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres. A riqueza de Deus não pode passar através da nossa riqueza, mas sempre e apenas através da nossa pobreza, pessoal e comunitária, animada pelo Espírito de Cristo.

À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. A miséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual. A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.

Não menos preocupante é a miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros – frequentemente jovem – se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspetivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se veem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína económica, anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos autossuficientes, vamos a caminho da falência. O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus.

O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos e irmãs imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.

Queridos irmãos e irmãs, possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja inteira pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo toda a pessoa. E poderemos fazê-lo na medida em que estivermos configurados com Cristo, que Se fez pobre e nos enriqueceu com a sua pobreza. A Quaresma é um tempo propício para o despojamento; e far-nos-á bem questionar-nos acerca do que nos podemos privar a fim de ajudar e enriquecer a outros com a nossa pobreza. Não esqueçamos que a verdadeira pobreza dói: não seria válido um despojamento sem esta dimensão penitencial. Desconfio da esmola que não custa nem dói.

Pedimos a graça do Espírito Santo que nos permita ser «tidos por pobres, nós que enriquecemos a muitos; por nada tendo e, no entanto, tudo possuindo» (2 Cor 6, 10). Que Ele sustente estes nossos propósitos e reforce em nós a atenção e solicitude pela miséria humana, para nos tornarmos misericordiosos e agentes de misericórdia. Com estes votos, asseguro a minha oração para que cada crente e cada comunidade eclesial percorra frutuosamente o itinerário quaresmal, e peço-vos que rezeis por mim. Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde!

Vaticano, 26 de dezembro de 2013, Festa de Santo Estêvão, diácono e protomártir

Francisco

A matança dos inocentes - Por: Daniel Serrão
, Professor catedrático (jubilado) da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

1. Sinto-me profundamente afetado pela aprovação, no Parlamento do Reino da Bélgica, de uma lei que permite aos médicos matarem menores de idade. Quero deixar aqui a minha opinião sem ambiguidades e sem qualquer preocupação em ser politicamente correto.

É claro que cada país faz, dentro das suas fronteiras, o que os seus habitantes, e quem os represente no sistema político, desejarem que seja feito. 86 deputados votaram a favor desta lei, 44 votaram contra e 17 acharam que não valia a pena darem opinião e abstiveram-se. Tudo bem; melhor dizendo, tudo mal.
Pois quando esses habitantes, por via dos seus representantes políticos, aprovam comportamentos que ofendem gravemente a dignidade de todos os que pertencem à família humana temos o direito de dar a nossa opinião.
Foi o silêncio de todos que tornou possível o horror criminoso de um governo da Alemanha, no início com legitimidade democrática, em pleno século XX. A lei estabelecia que havia vidas indignas de serem vividas, incluindo a vida de crianças, logo deviam ser exterminadas. E foram. Depois foi o plano inclinado até ao holocausto de milhões de Judeus e outros não-arianos. Milhões, não dezenas ou centenas. Os agentes desta matança disseram, em Tribunal, que se tinham limitado a cumprir a lei, como funcionários zelosos. Esta atitude levou a intelectual judia Hanna Arendt, que assistia aos julgamentos, a descobrir que, para estes homens, a morte do outro era uma banalidade burocrática, coberta pela lei. Tal como os executores da pena de morte nalguns Estados dos Estados Unidos da América.
2. Tenho o direito de dar a minha opinião como cidadão responsável por ter a honra de pertencer à grande família humana, tal como todos os cidadãos belgas pertencem; os que vão ser mortos e os que os vão matar.
Procurei informar-me dos motivos que levaram à apresentação da proposta de lei agora aprovada. Basicamente a proposta afirma, no que designa por desenvolvimentos, o seguinte:
- Temos uma lei que despenaliza a eutanásia desde 2002 e estamos confortáveis com ela - sem qualquer referência aos abusos que aparecem na imprensa belga, alguns dos quais estão em fase de julgamento.
- Contudo, ela não pode aplicar-se a menores mas apenas a maiores ou emancipados, juridicamente capazes, o que para os promotores é um mal que se pretende corrigir - esquecendo que a lei universal da maioridade é para proteger os menores de todo o tipo de abusos, incluindo os sexuais.
- Logo, vamos acabar legalmente com esta reserva etária e abrir a eutanásia a todos os nascidos mesmo que tenham apenas dias ou horas de vida. Para já aos menores que um pedopsiquiatra considere que tem capacidade de discernimento e está consciente no momento em que pede para ser morto.
Porquê?
Cito: «La décision de fin de vie est un acte d'humanité, posé en dernier recours. De ce point de vue, pourquoi les mineurs seraient-ils privés de l'accès à cet acte d'humanité» (a decisão de terminar a vida é um ato de humanidade, colocado em último recurso. Sob este ponto de vista porquê privar os menores de acederem a este ato de humanidade).
Portanto a eutanásia é um ato bom que deve ser praticado em adultos, em menores (e a seguir em recém-nascidos, como já acontece na Holanda).
3. A falácia desta argumentação está em considerar a eutanásia como o último recurso, quando o último recurso é o cuidado compassivo e bondoso que tira o sofrimento a adultos e a menores e permite que vivam o seu limitado tempo de viver em paz, serenidade e conforto físico e espiritual.
Refiro-me ao cuidado paliativo personalizado, que pode ser prestado no domicílio, cuidado no qual o menor não é um "caso" incurável, do qual os médicos desumanizados se desinteressaram, mas uma pessoa que merece todo o afeto e atenção para que não sofra até ao fim da sua vida.
Uma investigadora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, Marta Brites, vai defender uma tese de Doutoramento em Bioética sobre o Cuidado Paliativo Pediátrico, na qual mostra como esta atitude de atendimento da criança que sofre de uma doença sem cura pode - e deve - ser a regra nas instituições que atendem estes doentes. Porque, como escreve, "A ação paliativa em Pediatria é assumida como arte e ciência de prestar cuidados ativos e totais para com o corpo, a mente e o espírito da criança, envolvendo o suporte dos familiares".
Os 89 deputados que votaram a favor desta tenebrosa lei, não sabem nada do que é atender com afeto e compaixão a criança em vez de decidirem que irá ser morta. A História irá julgá-los, em nome da Vida, como julgou e condenou os carrascos nazis. Bem como aos médicos que se prestem a praticar a "matança dos inocentes".

In Voz Portucalense, 05.03.2014