Eutanásia para crianças é uma barbárie (Henrique Raposo)

O paraíso pós-moderno, a Bélgica, legalizou a eutanásia para crianças, ou seja, uma criança belga com uma doença debilitante pode pedir a morte medicamente assistida. Vamos lá ver se nos entendemos. Nós achamos que uma criança não tem discernimento político, é por isso que a idade política começa aos 18 anos. Nós achamos que uma criança não tem discernimento moral, é por isso que a idade criminal começa aos 16 anos. Nós achamos que ter sexo com uma criança é crime, porque consideramos que esse acto é um abuso da sua falta de discernimento. Mas, na Bélgica, esta criança já pode pedir a sua própria morte através da decisão mais absoluta e irrevogável. O absurdo lógico e moral salta à vista.
Como é óbvio, os pediatras belgas estão contra a nova lei, porque consideram que uma criança não tem o discernimento moral para compreender os conceitos de eutanásia, morte, para sempre. O óbvio ululante. Além disso, os médicos dizem que o pedido de eutanásia pode surgir num momento particularmente difícil, num momento de dor excruciante que pode obstruir de forma momentânea o juízo da criança e dos pais. E depois? Depois não há volta a dar, depois já não há arrependimento porque tudo acabou.
Vamos lá ver se nos entendemos. A conversa dos direitos humanos é para levar a sério, não é só para criticar os americanos quando eles não têm um Presidente negro. Se acreditamos mesmo nos tais direitos humanos, devemos defender sempre a inviolabilidade da vida humana, seja qual for a sua geografia, cultura ou condição genética. Um pessoa doente ou mais fraca não perde o direito à inviolabilidade da sua vida. Ora, a lei belga pressupõe o inverso e traça tagentes a uma ideia perigosa, a saber: há vidas que não devem ser vividas porque não dão prazer, porque só dão sofrimento. É a glória final e fétida do utilitarismo. A jusante, esta ideia utilitarista legitima aqueles que acham que têm o direito ou o dever de acabar com vidas imperfeitas e doentes. É o argumento que legitima a morte medicamente assistida e precoce de qualquer criança com trisomia 21, porque, ora essa, essas crianças são fracas, imperfeitas, dão muito trabalho e sofrimento à família, não são seres plenamente sencientes como nós. E o pior é que este raciocínio já não quer exterminar apenas as deficiências genéticas, também quer acabar com as indisposições psicológicas temporárias. Parece que a proposta inicial da lei belga determinava a legalização da eutanásia para crianças que estivessem fartas de viver por causa da anorexia, por exemplo. 

In Expresso

A violência das ondas (por José Maria C. S. André)

As revoluções ideológicas abatem-se sobre os povos, como ondas contra a rocha: quem se mete na frente é esmagado. Aconteceu literalmente em Tianamen, onde as lagartas dos blindados trituraram os manifestantes, e acontece, de várias formas, em todo o mundo. Parece impossível deter as marés do poder. E, de repente,… o mar fica tão calmo que nem se acredita.
 
Nos EUA, a partir de 1 de Janeiro de 2014, as instituições de caridade que se recusam a proporcionar aborto e métodos contraceptivos aos colaboradores, violam o sistema de saúde instituído por Barack Obama. Como tal, o Governo aplica-lhes uma multa de 100 dólares por pessoa, por dia. Há instituições com mais de 10.000 funcionários. Passadas poucas semanas, as multas somam quantias tão incomportáveis, que a maioria das instituições abrirá falência, se o dinheiro não lhes for devolvido rapidamente.
 
Em 2007 passou a ser obrigatório no Reino Unido aceitar a adopção por homossexuais e, com base nisso, fecharam 85% das instituições católicas que apoiavam crianças em dificuldade. As restantes, afogadas em multas, provavelmente não vão sobreviver. No Reino Unido, há casos de tribunais que retiraram crianças a famílias por o casal ser contra a adopção por homossexuais.
 
Em França, François Hollande aprovou o casamento homossexual e já há processos em tribunal contra os Presidentes da Câmara que se recusam a presidir a essas fantochadas. A somar às pessoas que estão na prisão por defenderem a dignidade humana, sem excepções.
 
Na Bélgica e na Holanda, a eutanásia está a abranger cada vez mais pessoas e recentemente começou a aplicar-se a crianças, como extensão do aborto.
 
Na Suécia, nos EUA e noutros países, há gente na prisão por ler em público as passagens da Bíblia relativas à homossexualidade, ou processadas por se recusarem a colaborar em casamentos homossexuais.
 
No entanto, o mundo é mais complexo do que parece.
 
O Supremo Tribunal dos EUA acaba de dar razão às Irmãzinhas dos Pobres, que se recusaram a contratar seguros que incluíssem aborto e métodos contraceptivos. A sentença deu ânimo a muitas casas de saúde e paróquias, que foram multadas da mesma maneira, a 100 dólares por dia, por pessoa. O fanatismo chocou com a fibra de umas freiras norte-americanas que trabalham em lares de terceira idade! O Governo não compreende como umas freirinhas frágeis e sem dinheiro lhe fazem frente. Baralhado, Obama está surpreendido por esta gente que ele maltrata. Em especial, a pessoa do Papa Francisco deixa-o profundamente impressionado, como ele próprio disse à televisão.
 
A situação é dramática para os católicos do Reino Unido, mas em 2010 o Parlamento, a Rainha e o povo, receberam Bento XVI como o Chefe de Estado mais importante do planeta. A Presidente do Parlamento reconheceu explicitamente a sua autoridade moral. O número de conversões em países de língua inglesa atingiu um recorde histórico. Tony Blair, antigo Primeiro Ministro, responsável pela adopção por homossexuais, converteu-se ao catolicismo.
 
Claramente, o mundo é complexo. A União Europeia aprovou há dias o relatório da Ulrike Lunacek (que quer fundar o mundo no aborto e na homossexualidade), mas também votou a favor da iniciativa «Um de nós», que recolheu 2 milhões de assinaturas em 20 países, pedindo protecção para os bebés desde o momento da concepção. A mesma União Europeia, que se envergonha das suas raízes cristãs, nomeou o Papa Francisco como o «Comunicador do Ano».
 
Mais curiosos são os comunistas. Os jornalistas da China, reunidos no «China International Press Forum», puseram o Papa em terceiro lugar, no meio dos ídolos tradicionais, o presidente iraniano Hassan Rohani, o ex-presidente egípcio Mohamed Morsi, etc.
 
Quase todos os meios de comunicação social, da «Time» à «Rolling Stones», riem da fidelidade no casamento, enaltecem o comportamento homossexual e tratam a Igreja como uma aberração retrógrada. No entanto, praticamente todos perceberam algo, que não sabem explicar. Um fascínio que os desarma e deixa sem argumentos. Como se explica que votem o Papa Francisco como figura do ano? Claramente, o mundo é complexo.
 
Em Novembro, os Bispos portugueses declararam que as leis do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou da co-adopção por homossexuais «são reversíveis». O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa duvida até que elas correspondam à vontade dos portugueses. Os órgãos de comunicação foram unânimes: nada pode parar a co-adopção pelos homossexuais! Será que os bispos não estão a ver a marcha imparável do progresso?
 
Em Janeiro, apesar do nevão que cortou as comunicações aéreas e algumas estradas, cardeais e bispos dos EUA, à frente de uma multidão imensa, proclamaram que preferiam respeitar os direitos humanos a obedecer a leis injustas. O Cardeal de Boston falou, na homilia, da precariedade do poder humano. Disse que as leis contra a dignidade humana são como aquele imperador vestido com um traje invisível, que ninguém se atrevia a contestar. De repente, uma criança, alheia às convenções sociais, desata a rir: o rei vai nu! E acrescentou que a voz da Igreja é, hoje, esta criança.
 
Às vezes, admiro o mar, outras vezes, os pequenos barcos que o dominam. Sobretudo aquela barquinha pequena, baloiçando na água. Teimosamente, há séculos.

In «Verdadeiro Olhar», 19-02-2014

Dor de amor (Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada)

Desde o passado dia 13 de Fevereiro é legalmente possível, na Bélgica, como já era na Holanda, a eutanásia de crianças e adolescentes. Do Reino Unido chega a triste notícia de que Reece Puddington, de onze anos e com cancro desde há seis, desistiu dos tratamentos médicos. Ele próprio declarou, nas redes sociais, ter decidido “ficar em casa”, para deixar a “natureza seguir o seu curso” inexorável. Também entre nós surgem vozes a reivindicar um pretenso direito a uma “morte digna”.
Não é muito de estranhar que assim aconteça. Com efeito, se se pode impunemente matar um ser humano saudável ainda por nascer, porque não abreviar a vida enferma de um velho, ou de uma criança que, por esse motivo, provavelmente nunca chegará à idade adulta? A sociedade neopagã, ao rejeitar o valor absoluto da vida humana inocente, que é um princípio básico da civilização cristã, é impotente ante as investidas furiosas da cultura da morte, sobretudo quando travestida de sentimentos supostamente humanitários. Eliminados os embriões, os doentes e os velhos, a utopia eugenista de recentes tiranos parece, agora, mais próxima da realidade.
A questão não é a dor, mas o amor: só não quer viver quem não se sente amado. Quem verdadeiramente quer aos seus, não desiste deles, qualquer que seja a sua idade ou o seu mal. Não se trata de promover o encarniçamento terapêutico, mas amar aqueles que, por alguma circunstância, mais carecem desse apoio. É isso que eles, graúdos e miúdos, pedem: mais do que a saúde, ou uma morte indolor, querem um afecto que os ajude a viver a experiência da dor, na alegria do amor. E é isso que a fé cristã a todos dá: a esperança certa de um amor maior, que é vida para além da vida.

In Ionline, 2014.03.01

O direito: poder ou razão? (P. Gonçalo Portocarreo de Almada)

A lei não pode ser um instrumento do poder das minorias contra a maioria, mas um garante da justiça e da solidariedade social

Sempre que surgem questões ditas fracturantes, há quem defenda a necessidade do reconhecimento jurídico dessas novas realidades.
É verdade que o ordenamento jurídico deve conhecer bem a realidade social que pretende regular. Também é certo que o direito positivo, numa sociedade laica, não tem por que obedecer a exigências de ordem sobrenatural, mesmo quando a sociedade se reconhece maioritariamente cristã. Mas destes princípios não decorre, ao contrário do que alguns afirmam, a absoluta arbitrariedade da ordem jurídica, nem a sua subserviência em relação ao poder emergente.
O direito não cria a realidade, mas ordena-a para o bem comum, segundo os princípios da justiça social. Não é o ordenamento jurídico que cria o ser humano, tão-só verifica a sua existência e reconhece os direitos e deveres inerentes à sua condição. Seria portanto aberrante atribuir este estatuto jurídico, por absurda hipótese, a algum ser não humano, ou negá-lo, como aconteceu com os escravos, a alguém dotado dessa natureza.
A este propósito, recorde-se que a lei é, sobretudo, uma ordenação da razão e não apenas, nem principalmente, uma expressão da vontade popular. O ser humano e a família não são aquilo que o povo quiser: são realidades naturais que o direito não pode deixar de reconhecer, pelo menos no que se refere à sua essência. Não cabe ao legislador, mesmo que mandatado pelo voto maioritário, estabelecer quando começa, ou termina, uma vida humana: é ao cientista que compete uma tal verificação. Depois de atestada essa realidade, o jurista fará decorrer as consequências previstas na lei, mas sem entrar na apreciação do acto em si, cuja avaliação não lhe compete. O direito não sabe, nem tem por que saber, quando surge ou se extingue a vida humana, mas não pode deixar de reconhecer o que é óbvio, não só em relação à vida como também ao que respeita à geração e à família, e daí extrair as respectivas consequências jurídicas. É o médico que está em condições de diagnosticar a existência de uma nova vida, ou de atestar um óbito, mas é o jurista que deverá depois desencadear os efeitos jurídicos decorrentes desses factos, na medida em que sejam juridicamente relevantes.
Se a noção clássica de lei sublinha o seu carácter racional e a sua intrínseca relação com o bem comum, a moderna definição de lei prende-se sobretudo com instâncias volitivas: a norma seria, sobretudo, a expressão jurídica da vontade popular ou, como diria Rousseau, da vontade geral. Ora, como a história demonstra com eloquência, nem sempre a vontade das maiorias é justa, porque também houve tiranos que, como Hitler, chegaram ao poder por via democrática. Não basta que a norma cumpra alguns requisitos formais, como seja o facto de emanar do órgão capaz de a produzir com eficácia; tem que ser também legítima, ou seja, justa, porque adequada ao bem comum. Um direito que é apenas a voz do poder preponderante, seja este ditatorial ou democrático, dificilmente poderá ser instrumento eficaz na construção de uma sociedade justa. Até porque os não-nascidos, as crianças, sobretudo as que são órfãs, os pobres e os doentes nunca serão, em princípio, um poder capaz de expressar de forma eficaz as suas legítimas pretensões, que o direito, contudo, não pode deixar de tutelar.

Mais do que qualquer outro princípio, interessa ao direito a defesa dos mais necessitados. O poder legislativo não pode ser um instrumento das maiorias contra as minorias, nem destas contra a maioria, mas um meio pelo qual, no mais escrupuloso respeito pela dignidade e liberdade dos cidadãos, se defenda, na verdade, a justiça e o bem comum.

In A voz da Verdade, 2014.02.16

O mais difícil (Pe. Vítor Gonçalves)

DOMINGO VII COMUM Ano A

"Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem,
para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus."
Mt 5, 44

Até descobrir que "OK" era a palavra mais usada do mundo pensava que "amor" teria o primeiro lugar. Ok, certamente isso acontece porque é dita do mesmo modo em todas as línguas! Porque, com traduções incluídas, continuo a pensar que "amor" tem a primazia. Pela sua presença ou ausência, quase tudo tem a ver com o amor. O amor é nomeado em inúmeros títulos de revistas (especializadas em esmiuçar as relações dos famosos) e até em dois filmes actualmente em cartaz. Num deles, "Her – Uma história de amor", Spike Jonze, aborda a possibilidade (?) do "amor" na relação que Joaquim Phoenix estabelece com um programa informático, qual parábola da crescente dependência da tecnologia e da fragilidade dos laços humanos.  
Do amor a Deus e aos amigos sempre se falou no Antigo Testamento, e muitos sentiram-se reconhecidos quando Jesus disse que ambos eram "o maior mandamento". Mas deve ter sido difícil ouvir aquele "subir de fasquia" que foi o apelo de Jesus a "amar os inimigos". Os salmos estavam cheios de apelos a Deus para nos libertar dos inimigos, comemorando a vitória sobre eles, quando não pedindo algum castigo como consequência das suas maldades. Como é possível amar os inimigos? E sorrio ao pensar naquela história de uma velhinha com 97 anos que dizia com absoluta convicção: "Amar os meus inimigos? É muito fácil! Já morreram todos!". Misturam-se muitas vezes os sentimentos e não é fácil sentir afecto ou gostar de quem nos quis, ou quer, mal. Gosto de citar Martin Luther King (como cito de memória exprimo mais a ideia do que o concreto das palavras): "Eu não consigo gostar de quem vem a minha casa e me maltrataa mim, e à minha família, porque sou negro. Não consigo gostar dessas pessoas. Mas, porque sou cristão, eu quero amá-las!". É o mais difícil; amar sem sentimentos de afecto à partida, amar desejando o bem e não o mal, amar cortando cedo as ervas daninhas do ódio e da vingança. Volto a Luther King: "O ódio paralisa a vida; o amor liberta-a. O ódio confunde a vida; o amor harmoniza-a. O ódio escurece a vida; o amor ilumina-a. O amor é a única força capaz de transformar um inimigo num amigo." É tão difícil que ninguém pode julgar quando não se consegue, do mesmo modo que não podemos desistir de tentar!
Jesus apresenta a oração como um primeiro passo do amor: pedir ao Pai por quem nos magoou é um bom "herbicida" contra as ervas daninhas da mágoa e do ressentimento. Abre-nos. Descentra-nos. E isso é um movimento do amor. O amor que não desiste. Como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade: "Este o nosso destino: amor sem conta, / distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, / doação ilimitada a uma completa ingratidão, / e na concha vazia do amor à procura medrosa, / paciente, de mais e mais amor. / Amar a nossa falta mesma de amor, / e na secura nossa, amar a água implícita, / e o beijo tácito, e a sede infinita."

In A Voz da Verdade, 23 de fevereiro de 2014