O furacão Bergoglio - por João César das Neves

papa-francisco-1Todos gostam do Papa Francisco. Os quadrantes mais variados são inspirados pelas palavras, pelos gestos e pelas atitudes do novo Pontífice. Nestes nove meses de pontificado sentiu-se uma lufada de ar fresco, não só na Igreja mas em todo o mundo. A novidade foi inesperada, apesar de acontecer repetidamente nos pontificados anteriores.
Muitos se lembram de 1978 e da lufada de ar fresco na Igreja e no mundo com a eleição de João Paulo II, que inspirou quadrantes muito variados. Mas esquecem que o mesmo acontecera um mês antes com João Paulo I, em 1963 com Paulo VI, em 1958 com João XXIII e com muitos outros. Apesar das comunicações lentas, até há evidentes paralelos de 2013 com a eleição de Leão XIII em 1878, Pio IX em 1846 e antecessores. É normal haver surpresa, entusiasmo, expectativa com um novo papa.
Raro é, após o fumo branco, ver-se na varanda de São Pedro uma cara conhecida. Aconteceu em 2005. O cardeal Ratzinger, além de antigo e famoso colaborador do papa Wojtyla, era autor consagrado, com vários best-sellers em seu nome. Muitos previram a eleição e assim fomos poupados à surpresa e à admiração. O assombro veio depois, quando o intelectual Bento XVI se revelou caloroso, mediático, comovente.
Precisamente por ser normal, a emoção à volta de Francisco tem elementos novos e fascinantes. É um grande homem de Deus, profundo, sensível, libertador. Neste caso, é mesmo justificada a paixão e o encanto (como nos casos anteriores). Em pouco tempo e com pequenos gestos, mas também com dois grandiosos documentos, o Papa Bergoglio soube tocar muita gente de maneiras muito variadas.
Nestes poucos meses, por inúmeras vezes, o Papa disse e fez coisas inesperadas, surpreendentes, incómodas até. Foi, mais do que lufada, furacão. Todos o notaram. A diferença está no que fizeram com isso. Todos gostam dele e o ouvem com interesse e prazer, às vezes com avidez. Mas existem duas maneiras diferentes de confrontar a sua pessoa. O consenso à sua volta sofre de um cisma fundamental, ainda oculto.
Existem aqueles que o seguem como Papa e os que o usam como Papa; os que aprendem com ele e os que concordam com ele; os que aceitam as suas palavras como aviso e os que as vêem como argumento. As ovelhas do Papa tomaram-no como dirigido a si mesmas e fizeram exame de consciência, propósito de emenda, penitência reparadora. Mas muitos consideraram os mesmos elementos apenas como apontados a outros. Esses só o usaram como argumento de discussão, confirmação de juízos, arma de arremesso. Esperam de Francisco não o anúncio do Reino e a divulgação da Palavra, mas a realização de agendas particulares e modelos pessoais. Não o querem como pai e mestre, mas como agente e gestor.
Deste modo, o Papa, como o seu Senhor, mas também como o seu fundador Inácio e o patrono de Assis, é "sinal de contradição", diante de quem "hão-de revelar-se os pensamentos de muitos corações" (cf. Lc 2, 34-35).
Boa parte da discrepância advém de uma má compreensão da função de Sumo Pontífice. Muitos, mesmo inteligentes e democratas, vêem o Papa como dono da Igreja de Cristo. Alguns que defendem a colegialidade eclesial querem agora nele poder central absoluto. Mas o sucessor de Pedro não manda, pastoreia. É o "servo dos servos de Deus". Francisco ama intensamente a sua Igreja e não a quer desmantelar ou desfigurar, como alguns apoiantes momentâneos pretendem. Desta incompreensão sairá, como em praticamente todos os pontificados anteriores, que o fascínio inicial se venha a transformar em críticas, zangas e perseguições dos que apoiaram o novo Papa sem ser realmente suas ovelhas.
O maior equívoco está em achar a Igreja obsoleta, exigindo actualização para sobreviver. Esquecem que já cá andava muito antes de surgirem as instituições antigas e permanecerá depois de desaparecerem as ideias agora inovadoras. A Igreja sempre precisa de reforma, por estar abaixo do ideal transcendente. Mas essa reforma é feita com os olhos no Céu, não nas conveniências do momento. A sua missão é converter o mundo, não ser aceite por ele.

In DN 2013-12-30

O Papa Francisco e o 'arrependimento' da esquerda - por Henrique Monteiro

A esquerda não costuma gostar de Papas. Não gosta do que é transcendente, não racional, embora adore o lado emocional das manifestações e dos discursos, e tem da Igreja sempre a ideia da Inquisição, como se a Inquisição tivesse acontecido antes de ontem e não tivesse, mesmo no séc. XVI, sido imposta pelo Estado e pelo poder político que a esquerda gosta de contrapor à Igreja.

Sendo laico, embora crente, concordo com a estrita separação de Igreja e de Estado e penso que um e outro devem viver o mais independentemente possível. Congratulo-me por perceber ser esse o pensamento do Patriarca de Lisboa e, de um modo geral, da Igreja moderna. Por isso não entendo a militância anti-religiosa que parece ser apanágio da parte mais ativa da nossa esquerda militante.
João Paulo II que disse umas verdades acerca do Leste europeu quando este era dominado pelo comunismo, foi por eles abominado. Bento XVI que disse umas verdades acerca da natureza da Teologia da Libertação, era odiado ("o pastor alemão") ainda que seja um dos grandes intelectuais europeus. Chegou Jorge Bergoglio (após a resignação de Bento XVI, num exemplo de retiro e abdicação do poder que quase nenhum político teve coragem) e, para não variar, a esquerda inventou uma cumplicidade do antigo Cardeal de Buenos Aires com a ditadura argentina.
A coisa foi desmentida e, finalmente, desmontada. O Papa revelou-se uma pessoa diferente, mais aberta, mais expansiva, mais ousada. E disse duas ou três coisas sobre o dinheiro e o capitalismo que, por acaso, os seus diversos antecessores já tinham também dito; mas parte da esquerda, que nunca olhou para a doutrina, mas apenas para o estilo, passou a endeusá-lo. Não me refiro aos católicos de esquerda, que são uma corrente respeitável da Igreja e que preferem seguramente o seu envolvimento mais próximo dos simples, mas àqueles que sendo "ateus, graças a Deus" a contra as hierarquias religiosas descobriram há um mês que a mensagem da Igreja há muito que é contra o "consumismo", a "ditadura dos mercados" e o "lucro desenfreado". Ou seja, que não foi Bergoglio a doutrinar, que o Papa apenas citou o que está nas escrituras e em encíclicas há muito escritas, desde a Rerum Novarum, de Leão XIII, escrita em 1891: "Os trabalhadores, isolados e sem defesa têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição" - este texto tem 123 anos.
Mas há mais antigos: "Ninguém pode servir a dois senhores; ou não gostará de um deles e gostará do outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Mt 6:24) - assim resumia São Mateus o pensamento de Cristo. " A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro" (primeira carta a Timóteo, de São Paulo).
Não há dúvida que a doutrina é antiga. Pelo que o súbito amor da esquerda pelo Papa tem o sabor de uma conversão: não do Papa, como pretende a esquerda, mas da própria esquerda. E como também está escrito (São Lucas), "haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por 99 justos".
Haja fé!

In Expresso, Domingo, 15 de dezembro de 2013

O Pânico da Misericórdia - por Nuno Serras Pereira

O título que encima este texto parecerá a muitos, senão mesmo a todos, totalmente espiclondrífico, uma vez que sendo a Misericórdia de Deus infinita, concomitantemente se crê que a confiança destemida n’Ela o deverá ser também. Por isso, a Igreja, mormente nos últimos 50 anos, não se cansa, num modo sempre crescente, de a anunciar e praticar. Isso é aliás, sem dúvida alguma, parte essencial e irrenunciável da sua Missão, enquanto prolongamento-presença de Jesus Cristo na história de todos os homens e do homem todo.

No entanto, têm sido esquecidas ou, pelo menos, relegadas para um esconso tão irrelevante e obscuro que não se dá por ele, outras verdades que são fundamentais para uma apreensão das Verdades de Fé, na sua rigorosa hierarquia (o que não significa, de modo nenhum, que qualquer delas seja insignificante ou supérflua). Esta será, porventura, uma das razões que tem levado sua Santidade o Papa Francisco I, a repisar, com uma insistência desusada, a existência do diabo, e a desmascarar as suas artimanhas pestíferas. É caso para dizer, apesar de alguns dizerem que o Santo Padre anda obcecado com o demónio, até que enfim, já não era sem tempo.

Não saberei dizer se alguém concordará comigo, uma vez que fazê-lo parece ser uma impossibilidade “metafísica” (ou será meramente “existencial?), mas estou em que também faz falta uma pregação habitual sobre a Justiça de Deus e a possibilidade real da condenação eterna, isto é do Inferno. De facto, tenho deparado demasiadas vezes, ao longo da minha vida, com situações desconcertantes, absurdas, mesmo de uma enorme gravidade, diabólicas. Darei somente um exemplo para ilustrar o que quero significar. Um pai de família, casado e com filhos, já nascidos, leva a sua esposa, mãe grávida, ao “abortadouro dos arcos”. Interpelado pela Leonor aceita conversar. Continua contente e feliz apesar do que a Leonor lhe diz porque “Deus é misericórdia” e, portanto, não faz mal nenhum abortar seu filho “porque Deus perdoa”. Por estas e por outras é que S. Pio de Pietrelcina, mais conhecido por Padre Pio, revelava, ou sentenciava, “Eu tenho mais medo da Misericórdia de Deus do que da Sua Justiça. A Justiça de Deus é conhecida: sabe-se por que leis ela se governa e, se alguém peca e ofende a Justiça Divina, pode apelar à Misericórdia, mas se abusa da Misericórdia a quem poderá recorrer?”.

Se os Santos, como sempre ensinou o Papa Bento XVI, são os melhores intérpretes da Palavra de Deus, de Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito carne, para nos Salvar, então será de toda a conveniência levar a sério esta sentença do Santo Padre Pio.

Uma medicina eficaz a que podemos recorrer é a de memorizarmos, meditarmos e rezarmos um Acto de Contrição bem feito. Há muitos anos encontrei um nas obras do P. Manuel Bernardes que me pareceu, como é, excelente. Mais tarde, porém, deparei com um outro, usado em outros países, que pela sua completude e concisão se me afigura que talvez seja ainda de maior proveito para as almas. É o seguinte: “Meu Deus, dói-me de todo o coração ter-Vos ofendido, e detesto todos os meus pecados, porque temo a perda do Céu, e os sofrimentos do Inferno; mas principalmente porque Vos amo, Meu Deus, que sois infinitamente bom e merecedor de todo o meu amor. Com o auxílio da Vossa Graça proponho-me firmemente confessar os meus pecados, fazer penitencia, e emendar a minha vida. Amen.”.

Um Santo Natal, na Graça de Deus, para todos.

14.12.2013

Emprego e dignidade - por João César das Neves

O pior desta crise está no emprego. Com uma taxa de actividade de 51,4%, 15,6% de desemprego e 22% de contratos a prazo, menos de 37% dos portugueses têm ocupação sólida. Este problema de altíssima taxa de inactividade é europeu, não só português. Para o combater é preciso ajustar os sistemas à realidade. Sem medo que mais actividade aumente o desemprego, pois trabalho cria trabalho; é a ociosidade que paralisa a economia.
A mística laboral moderna, por reacção à ociosa época aristocrática, glorificou o trabalhador como símbolo de excelência. Isso é bom e justo, mas as mudanças recentes exigem novas fontes de identidade. Ser inactivo, desempregado ou precário não pode ser vergonha, quando é a condição de quase dois terços dos cidadãos.
Desde sempre a posição e dignidade de cada um na comunidade liga-se à sua função social. A era moderna, no entanto, confundiu função com emprego, o que gerou males, sobretudo nos mais vulneráveis. Idosos, estudantes, crianças, donas-de-casa, como artistas, políticos, sindicalistas, sacerdotes, têm funções decisivas, apesar de não terem emprego. Num tempo economicista, que liga personalidade à produção, perdem dignidade.
Caso gritante é o trabalho doméstico. O lar, um valor humano supremo, agora é desprezado. Trabalhar em casa parece degradante. A família, que sempre foi a razão de toda a actividade exterior, emprego, política e luta, fica considerado como "andar com os tachos". Muitas pessoas, em geral mulheres, se queixam de terem um "emprego não remunerado" em casa, sem ver isso como muito mais digno e valioso do que trabalho.
Também a noção actual de "idoso" está obsoleta. Em 1950 a esperança de vida ao nascer em Portugal era de 58 anos; hoje é 80. Isto revoluciona as perspectivas de existência. Leis e instituições não o notam ou mudaram no sentido inverso. Antes uma pessoa de 65 anos era muito velha e trabalhava; o Decreto-Lei n.º 391/72 (13/Out), que criou o primeiro regime de previdência dos trabalhadores agrícolas, concedia reforma aos 70 anos (art. 2.º n.º 1). Hoje muitos sentem-se úteis acima dos 80, mas há mais de 20 anos que foram forçados à inacção. A esperança de vida aos 65 anos subiu nos últimos 40 anos mais de cinco (de 13,5 para 18,8 anos) enquanto a idade de reforma descia cinco anos.
É evidente que ninguém deve labutar no duro nessas idades. Mas envelhecimento activo é cada vez mais apresentado como meio decisivo para a qualidade de vida, depois de termos feito tudo para amarrar os idosos na inércia. A referida taxa de actividade resulta, em boa medida, de os políticos oferecerem às populações, como grande benesse, aquilo que na prática constitui a condenação à irrelevância e ociosidade, tantas vezes acompanhada de aborrecimento, solidão, apatia. Quando, devido a essa loucura, a segurança social rebenta financeiramente, os que a arruinaram acusam as medidas indispensáveis de destruir o estado social.
Também o ensino está mal calibrado. A educação não é um fim em si, nem pretende ocupar professores. O propósito tem de ser os alunos. Mas muitos jovens perdem tempo na escola, aprendendo coisas inúteis para o seu futuro, em nome de cânones educativos abstractos.
Além de políticas, estes problemas exigem o mais difícil: rever certezas e ideologias. A solução do nosso drama laboral seria fácil se conseguíssemos abandonar ideias feitas que décadas de propaganda nos gravaram na mente. É preciso subir a idade de reforma e conceber processos educativos mais curtos, dirigidos e eficazes. Mais urgente e relevante é promover e dignificar o voluntariado, trabalho doméstico e outras actividades informais e virtuais, onde cada vez mais gente participa, mas que a cultura obsoleta menospreza. Estas mudanças ajudariam até o pior problema nacional a que, por isso mesmo, ninguém liga: a decadência familiar e colapso da fertilidade. Também eles resultam da ideologia mercantilista, estatista e laboral, irremediavelmente retrógada. Mas a humanidade nunca consegue que os conceitos e opiniões mudem ao ritmo do real.

In DN 2013-12-09